10/11/11

A book a day keeps the doctor away: "Comissão das Lágrimas", António Lobo Antunes

Disse em tempos Eduardo Lourenço, a propósito da escrita de António Lobo Antunes, que “a África foi o espelho no qual ele pôde ver melhor o delírio da experiência portuguesa”, mostrando-nos “não apenas a morte em África, mas a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos” (António Lobo Antunes. A Crítica na Imprensa 1980-2010 Cada Um Voa Como Quer, Edição Ana Paula Arnaut, Almedina, 2011, p. 257).
O escritor, depois de recentemente ter andado por lá perto no belíssimo O Meu Nome É Legião, volta a render-se ao tema, agora num mergulho em apneia que tem como ponto de partida um episódio histórico.
Comissão das Lágrimas, cujo título retoma, com exactidão, o nome pelo qual ficou conhecido a comissão que, em Angola, seleccionou e enviou sumariamente para a morte os presumíveis envolvidos no golpe fratricida de 27 /05/1977, ter-lhe-á surgido a partir da história trágica de Elvira, conhecida por Virinha, uma militante do MPLA que, torturada e assassinada na sequência dos acontecimentos, se tornaria num símbolo de resistência: “a rapariga sem língua continua a cantar, erguíamo-la do chão e continuava a cantar, atirávamo-la contra o cimento e continuava a cantar, não se cala (…)”, p. 47.
Se o livro se funda no real, este, porém, apenas lhe serve de pretexto e, como sempre em António Lobo Antunes (uma das razões por que é grande), o particular depressa cavalga o universal.
Aqui, África é, de facto, um “espelho no qual ele [pode] ver melhor o delírio da experiência portuguesa”, mas também o sofrimento que nos calha a todos.
O romance retoma o chamado registo polifónico habitual (“o meu ofício é traduzir vozes”, p. 128), organizando-se em torno de três personagens principais: Cristina, que está internada numa clínica, assombrada por vozes que não lhe dão descanso; a sua mãe branca, Alice/Simone, ex-dançarina de plumas de lantejoulas que “coxeia [agora] a sua desgraça”, p. 49; e António, o preto a quem os brancos não deixaram ser padre, o pai (?) torcionário que, em Lisboa, continuará “à espera que o matem”, p. 49.
A polifonia é contrariada pelo cruzamento intrincado dos registos e pela dúvida que se instala ao longo do texto. Quem fala? E, quem fala, diz a verdade ou delira?
O tema da verdade que é, afinal, o tema que importa a todos os Inquisidores confunde-se, assim, nas memórias (reais? inventadas?) de Cristina na clínica e nas confissões arrancadas pela Comissão das Lágrimas, mais a confissão a que António é obrigado no seminário: “(…) perguntavam-me Desonraste a Divindade? e não era que não quisesse contar, era que não achava o que devia ser contado, pensava Ensinem-me o que deve ser contado ou Ensinem-me o que querem que eu conte”, p. 112.
A capacidade da ficção ir mais longe, explicará o desejo do literário. Por isso, talvez, o realismo esteja tão distante do registo de António Lobo Antunes, mesmo se, paradoxalmente, as palavras em que se exprime optem cuja sempre por uma materialidade crua, na fronteira do prosaico: “uma traineira com problemas nos ossos, por vezes um rebocador aflito da hérnia”, p. 313.
Finalmente, se Angola é o cenário principal de Comissão das Lágrimas, só se dá a ver em contraponto com a marquise de Lisboa, “o mundo dos naperons” que ficou para trás no tempo, as camponeses “de olhos cheios de vacas”, o passado que se mistura ao presente,ambos dolorosos.
E mais uma vez em António Lobo Antunes, seria preciso regressar à inocência da infância, no pressuposto que tal coisa possa existir.
António Lobo Antunes, Comissão das Lágrimas, 2011, D. Quixote

2 comentários:

via disse...

não há qualquer paciência para mais livros do Lobo Antunes. sorry pelo desabafo

henedina disse...

Não gostei.