27/09/09

A book a day keeps the doctor away

Apesar do que se diz ― a escrita ser a mais solitária das artes e tal (e é bem capaz de ser verdade…) ― produções literárias a várias mãos não são uma raridade. E nem precisamos de recuar ao Livro primordial (a Bíblia, naturalmente) para o comprovar. Um dos textos mais famosos da literatura portuguesa não tinha um autor mas três. Falamos de Novas Cartas Portuguesas, que, publicado com grande escândalo em 1972, trazia assinatura de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A primeira, aliás, reincidiria várias vezes nas parcerias.
Quem ama, odeia pertence a essa categoria da escrita colectiva. No caso, também criativa. No sentido nobre do termo.
Os seus autores, o casal formado pelos argentinos Silvina Ocampo (1903-1993) e Adolfo Bioy Casares (1914-1999), ensaiam um texto de estrutura policial, paredes-meias com o fantástico, um género que Bioy Casares levaria mais tarde à perfeição com A Invenção de Morel, muito antes de alguém poder falar de realidade virtual ou de Second Life. E se os capítulos de Quem ama, odeia não trazem autoria, nem por isso é difícil ao leitor imaginar o que se devem ter divertido Silvia e Adolfo, cada um passando ao outro a continuação do mistério.
Um médico homeopata, Humberto Huberman, parte de férias para o mar. O hotel onde se aloja, propriedade de familiares afastados, situa-se em paisagem bizarra, sempre sujeito a temíveis tempestades de areia (que obrigam a janelas blindadas), rodeado de bosques labirínticos e de um sapal povoado de caranguejos. Nele terá lugar a morte de um dos hóspedes, envenenado por uma dose mortal de estricnina.
As férias literárias imaginadas pelo erudito Huberman (que levava na bagagem Satiricon, de Caio Petrónio, tendo prevista a sua adaptação) transformam-se, assim, ironicamente, numa caça ao assassino do Bosque del Mar.
Claro que o que conta aqui não é, em primeiro lugar, o deslinde do crime. Quem ama, odeia é, sobretudo, uma piscadela de olho literária, um divertissement cheio de malícia, um exercício de escrita exemplar. Pisamos terreno lúdico. Como é fácil de perceber, logo no final do primeiro capítulo, face às perguntas a roçar o sarcástico de Huberman: “Quando renunciaremos ao romance policial, ao romance fantástico e a todo esse fecundo, diversificado e ambicioso campo da literatura que se alimenta de irrealidades? Quando encaminharemos os nossos passos para a picaresca saudável e para o ameno quadro de costumes? O cheiro a maresia já começava a penetrar pela janela. Fechei-a. Adormeci.”. É todo um programa.
O mesmo “programa” que conduziria Jorge Luis Borges, amigo do casal, por aqueles caminhos que infinitamente se bifurcam.
A vertigem que assola o leitor de Quem ama, odeia perante as várias hipóteses que vão sendo criadas para solucionar o crime é semelhante aquela que se apodera de nós quando entramos pelos universos borgeanos adentro, reproduções ad infinitum de si próprios. Aqui, contudo, há uma solução última. Algo pueril, talvez, mesmo se marcando de morte a inocência. Ou, quem sabe, seria precisamente isso o pretendido. Porque quem ama, odeia. Esse é ponto de partida e de chegada.
Não se espere, porém, apesar do título, uma novela romântica. O amor está lá, com os seus equívocos, mas o que sobressai é o distanciamento dos autores que o contam. Cristalinos, modernos e divertidos: “Quanto a mim, redigi as páginas que acabais de ler, porque algumas amigas da minha mãe – as únicas amigas que tenho – quiseram que a minha actuação na pesquisa ficasse documentada”.
E depois viveram felizes para sempre. O casal protagonista do livro, à imgem de Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares.

2 comentários:

platero disse...

Eleições e gripÁ

não confundir recomendação sanitária
oficial de
levar a esferográfica de casa
com:
oportunismo inqualificável de
levar esferográfica pra casa

vote bem, democratica mente

Bruno Vieira Amaral disse...

Muito bom, Ana. A escrita de Bioy Casares e de Silvina Ocampo é um deleite.