30/04/09

De onde se conclui que um inspector é um inspector é um inspector

Aqui há uns tempos a ministra da educação Maria Lurdes Rodrigues levou com ovos, acontecimento que se provou não ter qualquer ligação com o surto de gripe aviária que tantas dores de cabeça deu aos ocasionais engripados e tantos milhões deu à Roche.
Algumas perguntas haviam ficado, porém, sem resposta.
Quem atirara os ovos? Em que estabelecimentos tinham sido adquiridos? Que quantidades? Classe A, classe B ou biológicos? E recibos, houvera?
Estas e outras dúvidas andavam a apoquentar a Inspecção-Geral de Educação que, vai daí, resolveu interpelar directamente os alunos.
Aguardam-se ainda as conclusões do inquérito mas, segundo foi possível inferir das habituais fugas de informação, as Savage Chickens nada tiveram que ver com o assunto.
Entretanto, parece que durante os interrogatórios a frase mais pronunciada terá sido: "se não foste tu foi o teu pai!".

28/04/09

Tês3 para os Índios já! [ou que se vistam a preceito e animem o turismo com os seus modos picarescos]

Um já está, faltam 7. Foi inaugurado com pompa e circunstância. E foi construído em U para que nem um só hóspede deixasse de ver o mar, dizem. Fica na Meia-Praia, em Lagos, e também dizem que é de luxo.
Serão 8, portanto. Vão dar trabalho a muita gente que nem todos podem ser doutores. Até porque para doutores já nos basta o Pinho e para engenheiros, o Sousa, mais conhecido por Sócrates. Aos índios da Meia-Praia, a esses há que realojados em casas com condições que aquilo é uma vergonha!
Tês3 para os Índios, já!*
Humanize-se, pois, o que resta de costa e de vazio, que os portugueses têm horror ao vazio, como se prova pela mania das esplanadas que depois ninguém frequenta dadas as correntes de ar.
Que mil negócios de betão floresçam, mas agora sem tapar as vistas (veja-se o Estoril-Sol que bonito que ficou assim em degrauzinhos, tipo socalcos do Douro...). Nada de Torremolinos ou Quarteiras: Quintas do Lago é o novo paradigma litoral...
No meio disto tudo, só uma ideia perversa me consola: com a subida das águas prevista por bastos cientistas, pode ser que um dia o betão afunde [sempre se perdia menos do que a casa do Garrett deitada abaixo pelo Pinho].
Triste consolo, porém! O que me lembra, a propósito de "porém", uma frase do meu mestre [um dia havia de citá-la]:
They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, I regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?
*[ou que se vistam a preceito e animem o turismo com os seus modos picarescos]

27/04/09

Porque isto anda tudo ligado

1. Tiraram o cachimbo ao Tati e puseram-lhe um moinho de papel na boca [ao menos ao Lucky Luke tinham-lhe substituido a beata por uma palhinha...]
2. Inauguraram um Largo António Oliveira Salazar em Santa Comba Dão 35 anos depois do 25 de Abril, o que prova que os portugueses são uns gajos porreiros que esquecem depressa [já os alemães, esses rancorosos d'um raio, continuam a lidar mal com o Hitler passadas mais de 6 décadas...]
3. Canonizaram o Santo Condestável derivado a um feito tão grande ou maior ainda do que vencer Aljubarrota: salvou de cegueira certa o olho esquerdo de Guilhermina de Jesus quando este se viu borrifado por óleo de fritadura de peixe muito séculos depois das Luzes
4. O João Ubaldo Ribeiro, escritor brasileiro Prémio Camões de Literatura, teve a entrada negada nos supermercados Auchan (Jumbo), grupo que volta a proibir a venda nos seus escaparates do livro "A Casa dos Budas Ditosos", recentemente republicado pela Edições Nelson de Matos ["vão-se catar", já tinha dito o Ubaldo uma vez, a propósito de outras censuras...].

25/04/09

Não, não é um post sobre o 5 de Outubro

Já faltou mais. Afinal, já passaram 35 anos desde o 25 de Abril. O que me recorda que também já passaram 35 anos desde que passei uma tarde, adolescente precoce e feita parva (mas muito, muito mais nova...), num café do Estoril aguardando instruções sobre o que fazer, como diria Lenine.
Quem não foi na conversa que o golpe podia ser do Kaúlza foi o meu pai que zarpou cedo para Lisboa de onde apenas regressou haviam passado dois dias, descalço e afónico. Perdera os chinelos de praia que levara calçados com a pressa algures para lá no Chiado e a voz fora-se-lhe de tanto cantar o Grândola.
Lá em casa tinha sido assim:
Bem cedo, a minha mãe levantou-se e ligou como sempre a rádio. Pediam calma aos ouvintes e davam-lhes música. Cheirou-lhe a esturro e não era das torradas. Decidiu chamar o marido: "Vem ouvir! Aconteceu qualquer coisa!"
Este, precipitando-se, de ouvido e coração colados às notícias, terá concluído rápido que a coisa estava do lado dele: o gosto musical coincidia. E enquanto isto eu dormitava ainda, embalada pelas interjeições que chegavam da cozinha.
Despertei para o novo mundo com o barulho da minha mãe na escada, por onde corria atrás do meu pai que, sem poder conter-se mais, galgava ao terceiro andar a avisar o vizinho dos seguros, companheiro de esperançosas tertúlias.
"As calças do pijama! As calças do pijama!" – gritava ela, evitando assim o escândalo de um homem nu pelo prédio, mesmo que só abaixo da linha da cintura.
E salvando-se naquele momento o pudor, os chinelos de praia, esses, nunca mais apareceriam.

23/04/09

A book a day keeps the doctor away

Ecletismo poderá ser palavra apropriada para definir os livros de Henrique Garcia Pereira. Engenheiro e professor catedrático do Instituto Superior Técnico, baby boomer com muito gosto e, ao que se percebe, proveito, Garcia Pereira (que não é familiar do advogado homónimo) acaba de publicar o segundo volume da sua trilogia Fragmentos do Mediterrâneo.
Depois de nos ter levado a deambular por Chipre e pela Grécia (Creta, Milos e Aegina), acompanhamo-lo agora até à Sicília, Capri, Sardenha, Córsega, Génova, Nice e Avignon, todos os destinos reunidos sob o título A Cortina Central (Terorema, 2009).
O terceiro volume, já anunciado, e que se chamará A Janela Hispano-Atlântica há-de percorrer Barcelona, Valência, Ibiza, Cádis e Huelva, para terminar no Algarve, em Tavira.
O autor avisa na contracapa: “O Mediterrâneo não se herda, consegue-se. E eu consegui o meu Mediterrâneo percorrendo-o lentamente em dezasseis capítulos, organizados em três faixas geográficas (cortadas segundo o meridiano). Mas esta aparente linearidade coexiste com uma turbulenta cartografia sentimental, feita pela escrita das cidades marítimas que explodem no espaço-tempo…”.
Viagem sentimental, pois, que se não imita Sterne também não se esgota em roteiro nostálgico. Eclético, sempre, Garcia Pereira mistura literatura e história, revoluções e amores fugazes, geologia e apontamentos de circunstância. Aproveitando para reafirmar algumas das suas manias privadas, com destaque para a sua claríssima aversão a tudo o que não seja urbano – o que me levou a recordar com absoluta nitidez a definição de Manuel Vicente sobre o “campo”, resumido literalmente pelo arquitecto a: “o sítio onde paro para mijar entre duas cidades” – o engenheiro químico e de minas transmuta-se em viajante com história, recordando episódios e compilando saberes. Fá-lo com o acrescento de imagens (infelizmente, de fraquíssima impressão) e de notas absolutamente saborosas que, mais do que servirem de muleta de apoio ao texto principal, funcionam como links que remetem para outras leituras, abrindo o espaço (pessoal) do seu Mediterrâneo a um verdadeiro hiperespaço de cultura, idiossincrasias e cumplicidades. Um prazer.

22/04/09

"No way Jose": Confused? You won't be, after the next week's episode of... fripór

Limito-me a transcrever artigo do "Diário de Notícias".
Ao primeiro cliente da Pastelaria que o conseguir decifrar, serão oferecidos três alqueires de bolas de berlim.
Quanto a mim, vou antes dedicar-me ao Teorema de Gödel. Talvez tenha mais hipóteses.

«O escritório de advogados inglês Decherts 'ilibou' Charles Smith de qualquer ligação a actos de corrupção praticados em Portugal para o licenciamento do Freeport. Os advogados visionaram o vídeo (divulgado na passada sexta-feira pela TVI) feito por Alan Perkins, ex-administrador do Freeport, fizeram cruzamentos de transferências de dinheiro e ouviram testemunhas. A conclusão foi de que, quando muito, Charles Smith estaria a tentar 'sacar' mais dinheiro do Freeport pela consultadoria prestada, inventando a história dos subornos.
Os advogados da Decherts, que foram chamados pela Freeport para investigar o conteúdo do vídeo onde Charles Smith aparece a falar de subornos, realçam ainda que Alan Perkins gravou o vídeo em Março de 2006, mas só o apresentou à administração em Janeiro de 2007, numa altura em que estava a negociar a sua saída da empresa. O relatório final da investigação foi depois entregue à administração da Carlyle que, em Abril de 2007, tinha em curso uma OPA à Freeport.
A Decherts analisou todas as transferências de dinheiro de Inglaterra para Portugal. Em Alcochete, uma técnica de contabilidade fez o mesmo. Não foi encontrado nada de anormal que pudesse sustentar as palavras de Charles Smith quanto a pagamentos de subornos a José Sócrates.
Em Julho de 2007, quando foi interrogado pela polícia inglesa, Charles Smith foi confrontado com alguns e-mails que agora surgem no processo português. As audições em Londres foram presididas pelos polícias Roger Cook e Paul Farley que chegaram a confrontar o empresário com a notícia do jornal O Independente de Fevereiro de 2005 que dava conta do início do processo Freeport.
Segundo documentos a que o DN teve acesso, terá sido em Inglaterra que Charles Smith contou, pela primeira vez, a história de que o escritório de advogados Antunes Marques Oliveira Ramos Gandarez & Associados tinha preparado uma proposta, a 4 de Dezembro de 2001, no sentido de pedir à empresa Freeport cerca de quatro milhões de libras para que o projecto em Portugal fosse aprovado. Smith terá indicado o nome de dois cidadãos ingleses, residentes em Portugal, com quem, em 2001, terá conversado sobre o assunto. Keith Payne e Roger Abraham já foram ouvidos pelos ingleses, mas até ao fecho desta edição, não foi possível apurar se foram inquiridos em Portugal.
Aliás, terá sido após a conversa com Charles Smith que o inglês Keith Payne escreveu uma carta a Rick Dattani - na altura financeiro da Freeport em Inglaterra, e um dos nomes que consta da Carta Rogatória. Por sua vez, Dattani terá enviado, a 17 de Dezembro de 2001, a Jonathan Rawnsley, administrador da Freeport, uma nota, referindo-se a Keith Payne como o "tipo que me alertou para o suborno de dois milhões". Esta é a única informação que vem nos documentos ingleses, mas nas recentes inquirições os advogados José Francisco Gandarez, Albertino Antunes e Alexandre Oliveira terão negado ter feito tal proposta.
Entretanto, uma expressão, "No way Jose", que consta de um documento apreendido na empresa Smith&Pedro intrigou os investigadores portugueses do caso Freeport que, durantes os três dias de interrogatório, questionaram Charles Smith sobre quem era o tal José. Seria Sócrates, por exemplo? A tradutora da Polícia Judiciária traduziu à letra um documento manuscrito do empresário que terminava daquela forma. Só no interrogatório é que perceberam de quem é que se tratava: uma expressão idiomática em inglês que quer dizer "nem pensar".
Apesar de a Procuradoria-Geral ter garantido, há meses, que José Sócrates não era suspeito no caso Freeport, nos interrogatórios, Manuel Pedro e Charles Smith foram confrontados várias vezes com suspeitas relacionadas com o "não suspeito". Questionada pelo DN sobre esta situação, a PGR recusou prestar esclarecimentos, invocando o segredo de justiça.»

20/04/09

James Graham Ballard (15 Novembro 1930 – 19 Abril 2009)

"I would sum up my fear about the future in one word: boring. And that's my one fear: that everything has happened; nothing exciting or new or interesting is ever going to happen again... the future is just going to be a vast, conforming suburb of the soul", James Graham Ballard
Fotofrafia: Eamonn McCabe

19/04/09

Shit, man!

1. Ao contrário do Miguel Sousa Tavares, não posso garantir se José Sócrates é inocente, culpado ou assim-assim no que ao caso fripór diz respeito.
Até posso fazer conjecturas, ter opiniões ou imaginar cenários: pelo menos desde que li o único Sócrates que importa, o Grego, sei distinguir doxa de episteme.
2. Sei um bocadinho mais: sei que a corrupção em Portugal é um vês que te avias ― segundo a organização Transparency International, em 2008 (32ª posição) estivemos mais corruptos do que em 2007 (28ª posição), e em 2007 estávamos mais corruptos do que em 2006 (26ª posição)…
3. Alargando o âmbito do (meu) desconforto, assim de repente, nomes como Fátima Felgueiras, Avelino Ferreira Torres, Carolina Salgado, Mesquita Machado, Isaltino Morais, Pinto da Costa, Teresa Costa Macedo, Valentim Loureiro, Paulo Pedroso, Domingos Névoa, Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Oscar Silva, Joe Berardo, Carlos Cruz... dão-me pesadelos (dos quais, felizmente, não me lembro ao acordar).
Como isto é suposto ser um Estado de Direito alguns da lista acima nunca foram incriminados, outros foram inocentados e outros falta ainda ver. Dão-me pesadelos na mesma.
4. A TVI passou na sexta-feira passada uma gravação que põe o primeiro-ministro pelas ruas da amargura. Não vejo televisão (é o snobismo que me resta…).
5. Vi o vídeo online. E o meu comentário, dado que não sou jurista, foi singelo: porra!
6. Nota: parece que o escocês primeiro disse que não tinha dito nada contra o primeiro-ministro, e agora talvez venha dizer que mentiu, se é que já não o fez.
Diz que disse aparte: que é um lamaçal, é. Mas vão-me desculpar: a culpa não é da TVI. Isso posso garantir. Até porque sou insuspeita, dado não ver televisão. Nenhuma. Nem sequer a do governo.

17/04/09

Parece que os radicais islâmicos vão chegar de Boeing e TGV

Pelo menos foi o que eu percebi ao ler as declarações do inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, José Van der Kellen. E logo me ocorreu que, para os próprios, sempre será melhor do que tentar chegar de barco e afogar-se pelo caminho.
Num país em se mede a contenção dos decotes, talvez fosse preferível pedir pudor às palavras. E não me refiro a "autismo".
Foto roubada daqui.

16/04/09

À atenção de Dona Maria Pulquéria Contente Lúcio

Afastada que tenho andado, só muito devagarinho tive conhecimento da existência de uma senhora chamada Maria Pulquéria [já não nos bastava a Moreira], a qual, fiquei a saber, tem ideias bastante claras sobre o vestuário em geral e o feminino em particular.
É pensando nela que deixo aqui estas notas.

1. A Mary Quant, que partilha com André Courrèges a "invenção" da mini-saia, nasceu em 1934 e, em 1966, receberia da rainha de Inglaterra a Ordem do Império Britânico [quanto a Courrèges, veio ao mundo ainda mais cedo: 1923].
2. A mini-saia, apesar de Madame Chanel a achar uma coisa horrível, foi uma das maiores revoluções da história da moda, se descontarmos precisamente os modelos da Coco e o New Look do Christian Dior.
3. O ditador ugandês Idi Amin, que chegou a declarar-se "rei da Escócia", não gostava de mini-saias. E vai daí proibiu-as embora, ele próprio, não desdenhasse aparecer de kilt.
4. Ainda no Uganda, mas mais recentemente [o ano passado], James Nsaba Buturo, ministro da Ética e Integridade, também veio falar mal das mini-saias acusando as mulheres que as usam de fazer aumentar o número de acidentes na estrada.
5. Em Março de 2008, na África do Sul, centenas de mulheres sairam à rua defendendo o seu direito a vestirem mini-saia
6. A 13 de Abril deste ano, na Rússia, uma mulher de 21 anos foi mandada assassinar pelo próprio pai que não se resignava com o facto da filha andar de mini-saia na rua.
...
Como se vê, Dona Pulquéria andará tapada e bem acompanhada.

15/04/09

Eu vinha falar sobre o autismo dos nossos deputados que não sabem interpretar uma metáfora quando me saltou às canelas um poeta surrealista*

Avisto na rua um cão
Digo-lhe: como vais, cão?
Pensa que me responde?
Não? Pois bem, mas ele responde-me
E isso não é da sua conta
Agora quando se vêem pessoas
Que passam sem sequer reparar nos cães
Sentimos vergonha pelos seus pais
E pelos pais dos seus pais
Porque uma tão má educação
É coisa que requer pelo menos... e não estou a ser generoso
Três gerações, com uma sífilis hereditária
Mas, para não vexar ninguém, devo acrescentar
Que um número considerável de cães não fala com
muita frequência
Boris Vian, "Bom-Dia Cão" in Cantilenas em Geleia (tradução de Margarida Vale do Gato, Relógio D'Água, 2004)
* o assunto politicamente correcto de que não falei é este

14/04/09

A book a day keeps the doctor away

Teve vida curta e os textos que escreveu foram tudo menos longos. No ano do bicentenário do nascimento de Edgar Allan Poe (1809-1849), a Quetzal, com o Círculo de Leitores, abalança-se aos seus contos completos.
“Todos os Contos 1”, com ilustrações do espanhol Joan-Pere Viladecans e tradução de J. Teixeira de Aguilar, tradutor com créditos firmados na ficção científica, é obra literalmente de peso que contabiliza 522 págs. e reúne 34 títulos, entre eles, “O Escaravelho de Ouro”, “Os Crimes da Rua Morgue”, “A Carta Roubada”, “O Gato Preto”, “A Queda da Casa de Usher”, “O Poço e o Pêndulo”, “O Barril de Amontillado” ou “O Retrato Oval”, para citar alguns dos mais conhecidos.
As histórias são eclécticas e vão do macabro ao policial, da ficção científica à sátira. “A Vida Literária do Ex.mo Sr. Thingum Bob Ex-Director da Goosetherumfoodle, Pelo Próprio” é excelente exemplo deste último género: “Estou já numa idade avançada e, como me consta que Shakespeare e o Sr. Emmons já faleceram, não é impossível que eu próprio venha a morrer. Ocorreu-me, por conseguinte, que faria melhor em abandonar o campo das Letras e descansar sobre os meus louros. Tenho, porém, a ambição de assinalar a minha abdicação ao ceptro literário deixando algum legado à posteridade; e talvez a melhor coisa a fazer seja escrever para ela um relato dos primórdios da minha carreira”.
Carreira é termo que só por total inépcia se invocaria em relação a Poe. Com vida e obra que o empurram para o panteão romântico dos escritores malditos, paradoxalmente, o norte-americano foi também o responsável pela morte do sujeito-lírico, esse arquétipo assassinado sem dó no seu ensaio “A Filosofia da Composição”.
Filho de actores, abandonado pelo pai e órfão de mãe, Poe seria perfilhado pelos Allan, família com quem manteve uma relação conflituosa. Levaria uma vida errática que registou expulsões escolares e do exército, viuvez precoce, despedimentos, álcool, drogas e tentativa frustrada de suicídio, para terminar aos 40 anos de modo ainda hoje não esclarecido: encontrado na rua em delirium tremens morreria poucos dias depois sem nunca ter recuperado completamente a consciência.
Deixou uma única novela longa – “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” – e ensaios de crítica literária, poemas e contos. É reconhecidamente o precursor do género policial e os seus textos de terror psicológico continuam a arrepiar-nos. Porém, ao contrário dos românticos, a eficácia de Poe residirá sobretudo na sua fina ironia. E, capaz de desassossegar o leitor não tanto pelo recurso a fantasmagorias góticas delirantes mas mais pelo excesso de racionalidade (leia-se, por exemplo, “A Aventura sem Paralelo de Um Tal Hans Pfaaall”), o autor de “O Corvo” descreve um medo real, autêntico, que surge de dentro – como alguém resumiu, “não é o medo que origina a neurose, é a neurose que origina o medo”.
Sempre redigidos na primeira pessoa, os seus contos colocam em cena protagonistas que se confrontam consigo próprios, sujeitos inquietos e inquietantes num mundo que segue o curso normal. Apesar de ter ficado colado à ficção fantástica, poder-se-ia dizer dele o que de si mesmo diz o narrador de “O Mistério de Marie Rogêt”: “Não há no meu íntimo qualquer crença no sobrenatural”.
É difícil acrescentar o que for sobre um escritor acerca do qual já se escreveram mais quilómetros de frases do que aquelas de que o próprio foi capaz. Mas se entre o caos da loucura e a lucidez clara e distinta a fronteira, a existir, é muito ténue, talvez seja nesse território movediço que o devemos situar. Longe de folclores mais ou menos satânicos, é do próprio homem dividido entre o ordinário e o extraordinário que Poe fala. De nós, portanto. Passados dois séculos, o medo continua a ser servido ao natural.
Todos os Contos 1, Edgar Allan Poe, 2009, Círculo de Leitores/Quetzal

13/04/09

Se não sabe porque é que pergunta?

Chamada de capa da revista feminina "Máxima" catrapiscada enquanto me abastecia da dose diária de nicotina: Está preparada para o seu filho casar com outro homem?