30/12/08

Obras-primas: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Capítulo Primeiro
Óbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!
Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi. à beira de minha cova: — «Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.»
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, ; minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha — um lírio do vale, — e. . . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
«Morto! morto!» dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaíase-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

28/12/08

2008: as vendas de O Segredo, o yes, we can! de Obama e o l'air du temps que nos toca a todos

O leitor vai-me perdoar o início um tanto abrupto, mas o que raio poderá querer dizer Todas as coisas que deseja são feitas de energia e estão também a vibrar? E para que não se diga que, malevolamente, privei a frase da sua circunstância, acrescento a versão integral do parágrafo: Deixe-me explicar-lhe como é que você é a torre de transmissão mais poderosa do Universo. Em termos simples, toda a energia vibra com uma certa frequência. Como energia que é, você também vibra com uma certa frequência, e o que determina a sua frequência a qualquer momento é aquilo em que está a pensar e a sentir (...).
Ainda que incapaz de visualizar o Universo — e eu própria dentro dele — acometido por uma qualquer doença vibratória aparentada com Parkinson, atirei-me à leitura do livro de Rhonda Byrne como gato a bofe. Mea culpa, nunca tinha lido O Segredo. Fi-lo a propósito da conferência que Bob Proctor, um dos seus mentores, realizou a 18 de Junho deste ano em Portugal com a ajuda (na primeira parte) do grande Adelino Cunha.



Pensando ter entre mãos um texto de auto-ajuda, confesso que não estava preparada para tanto. Não é que desconhecesse a linguagem. Lá pelos idos de 70 cruzei-me com alguns discípulos de Prem Rawat, nome de guerra Maharaj Ji, guru exótico um tanto gordo que coleccionava Rolls Royce e acólitos vindos do rock. Era, porém, um pequeno grupo, ao invés dos adeptos de Rhonda Byrne, ou pelo menos do seu livro, campeão de vendas nacional em 2007 e, segundo se noticia aqui, também em 2008.
Os organizadores da conferência de Proctor calcularam sete mil espectadores no Pavilhão Atlântico. Um número que só pode surpreender pela modéstia. Afinal, ele foi homem para garantir, sem pestanejar: Posso mostrar-vos como ganhar o dinheiro que precisam, para as coisas que querem, para viver da maneira que preferirem viver. Os adeptos do guru Maharaj Ji da minha juventude seriam menos materialistas, mas, entretanto, até eles terão percebido que «money makes the world go around». Proctor incluído. Um cachet base de 35 mil dólares, mais despesas de deslocação, é quanto, oficialmente, cobrou pela conferência de duas horas e meia. Resumindo: à semelhança dos almoços, também não há segredos grátis.
No caso, o «segredo» é apenas um e responde pelo nome de Lei da Atracção: Tudo o que entra na sua vida é atraído por si. E é atraído por si em virtude das imagens que guarda na sua mente. É aquilo em que está a pensar. Seja o que for que está a ocupar a sua mente, é isso mesmo que está a atrair para si.
A frase levanta alguns problemas. Embora já não se encontre disponível online, o YouTube chegou a alojar um vídeo do programa de televisão da NBC «Saturday Night Live» no qual a actriz Maya Rudolph parodiava uma entrevista de Oprah Winfrey (uma fã de O Segredo) a um habitante de Darfur. Naturalmente, a grande pergunta era: teria mais pensamento positivo impedido o genocídio? À luz do que vem escrito no livro, a resposta só podia ser «Sim!». Traduzindo para linguagem poética (que Carlos de Oliveira nos perdoe a heresia...): se pensarmos com muita, muita força, não há machado que corte a raiz ao pensamento.
Seja qual for o objecto da nossa psique, o «segredo» consiste sempre em visualizá-lo no presente, antecipando-lhe a materialidade: dinheiro hoje, amor agora, saúde já, sucesso imediato, estacionamento ao virar da esquina...
Para o leitor que julga que ironizo, cito: A razão pela qual você é a torre de transmissão mais poderosa do Universo é o facto de lhe ter sido dado o poder de focar a sua energia através dos seus pensamentos e de alterar as vibrações daquilo em que está focado, que é depois magneticamente atraído até si.
Atenção! Avisa-nos O Segredo que este poder pode também virar-se contra nós. Maus pensamentos resultam em más vibrações, e más vibrações magnetizam coisas más. Veja-se como Rhonda Byrne aplica exemplarmente o raciocínio às dietas: Ninguém tem ‘pensamentos magros’ e é gordo. Isto contraria a lei da atracção (...) Os alimentos não o fazem perder peso, a não ser que acredite nisso.
A doença não é excepção: Tinham diagnosticado a Norman uma doença ‘incurável’. Os médicos disseram-lhe que tinha apenas alguns meses de vida. Norman decidiu curar-se a si próprio. Durante três meses, viu apenas filmes cómicos e riu, riu, riu. A doença deixou o seu corpo nesses três meses, e os médicos consideraram a sua recuperação um milagre.
Quanto a arrumar um carro, é coisa de principiante: As pessoas ficam admiradas por eu conseguir sempre um lugar de estacionamento. Ando a fazer isto desde o início, depois de ter percebido pela primeira vez O Segredo. Visualizava um lugar de estacionamento exactamente onde o queria e 95 por cento das vezes ele estava lá para mim e eu só tinha de estacionar. Cinco por cento das vezes tinha de esperar um minuto ou dois, e a pessoa saía e eu entrava. Faço isso regularmente [mais frases mortais para quem estiver interessado].
Chegados aqui, cumpre esclarecer. Declarar que a mente, de per si, muda a realidade exterior já não faz prova de optimismo nem é exemplo de pensamento positivo. Caímos em pleno caldeirão do pensamento mágico, assente, neste caso, num individualismo exacerbado (mesmo se disfarçado pela comunhão cósmica), a que se acrescenta o imobilismo social (mesmo se disfarçado pela cenoura do sucesso). Amálgama de falsidades científicas e lugares-comuns comportamentais, reciclagem de conceitos New Age misturados com New Thought, O Segredo soma milhões de cópias vendidas. Se nos lembrarmos que Barack Obama, o novo Presidente dos EUA, teve como slogan de campanha «Yes, We Can!», o que é que nos surpreende afinal no l’air du temps?



Bob Proctor, it’s all about the money?
Apresentam-no como filósofo, mas Proctor reconhece não ter estudos. O livro Think and Grow Rich, de Napoleon Hill, mudou-lhe a vida aos 26 anos. Mais tarde chegou a vez de ele escrever You Were Born Rich. E, entretanto, tornara-se rico de verdade. Segundo o próprio, graças ao «segredo»; segundo outros, graças aos seus dotes oratórios de pregador e à credulidade do público. Foi um dos que esteve ao lado da australiana Rhonda Byrne desde a primeira hora, participando no DVD The Secret, que daria mais tarde origem ao livro com o mesmo nome. Participa em conferências pelo mundo e disse numa entrevista à revista brasileira Veja, em Abril passado: Se convivemos com pessoas tristes, ambientes negativos, isso impede-nos de acreditar que cada um é o que quiser ser. Eu não perco tempo com pessoas infelizes. Ninguém deve perder tempo com elas.
Curto, grosso e com sucesso garantido.

21/12/08

«Ao vencedor, as batatas»

Vou ser absolutamente pueril. E, sim, gosto de advérbios de modo. Ao invés, aborrece-me Sócrates, o primeiro-ministro. Tudo nele me aborrece. O curso, o inglês, as casas (ah, como me aborrecem as casas!), os livros que finge ter lido, os esgares, o perfil e os lugares-comuns, até os fatos me entediam de tão óbvios. E por falar em fatos abrevio: repugna-me a enfatuada ignorância.
Citando de novo esse génio do humor que dá pelo nome de Lewis Black, José Sócrates é a prova de que o americano estava universalmente certo quando disse: In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants.
Da política tive eu, em pequenina, sem naturalmente o saber que não venho para aqui armar-me em génio, uma visão pré-maquiavélica. Resume-a muito bem J.M.Coetzee em Diário de um Mau Ano: A posição pré-maquiavélica era a da supremacia da lei moral. Se acontecesse a lei moral ser por vezes infringida, era uma infelicidade, mas no fim de contas os governantes eram apenas humanos. A nova posição, a maquiavélica, é que a infracção à lei moral se justifica quando necessária.
De Maquiavel, que era esperto, fomos andando até chegarmos às plantas que, como é fácil entender mesmo sem ter lido Kant, escapam à lei moral.
Um pragmatismo alucinado invadiu a política. A presente crise internacional, nascida disso mesmo, não teve como resultado nenhuma discussão séria. Comemos mais do mesmo. Não que eu me encontre ainda na fase anal pré-maquiavélica ou tenha qualquer ilusão sobre o «homem novo» (neste capítulo estou com o Viridiana do Buñuel). Apesar disso, as Luzes continuam a pestanejar a espaços no trapézio do meu cérebro, como diria Machado (e, já agora, diga-se que o título deste post também é do brasileiro).
Tudo isto me foi gerundicamente ocorrendo (eu avisei que gosto de advérbios de modo), após ler estas declarações de José Sócrates a respeito do próximo ano, chamado pelo próprio (ou pelos assesores de agit-prop) o «cabo das tormentas»: É preciso agir sem ortodoxia e sem ideias feitas (...) É preciso estar com a mente aberta para responder aos problemas e não para responder às necessidades da nossa ideologia. Precisamos de ter mente aberta e não ficarmos reféns da ideologia ou das respostas clássicas, porque problemas novos exigem respostas novas.
Ou seja, e sem lembrar agora a frase de Richard Dawkins: There's this thing called being so open-minded your brains drop out. Ou lembrando-a. Pronto. Esqueçamo-nos por uns segundos que o iluminado engenheiro se refere à actual crise. Façamos de conta que fala durante os heróicos tempos do boom financeiro que acabou como se sabe. Sublinhem-se as diferenças. Zero! Ideias novas? Zero. O mesmo ódio ao pensamento (entendido pejorativamente como "respostas clássicas"), a mesma crença no fim das ideologias (depois ― ou antes? ― foi ― ou fora? ― o fim da História), o mesmo credo pragmático. O paleio é decalcadinho... como decalcadinho de outras matrizes se mostra o paleio de Alegre. É o cabo das tormentas: estamos entregues às plantas.

20/12/08

Música variada para o fim-de-semana


Kreisler toca Kreisler - Schön Rosamarin


Wilma de Angelis - Rosita cha cha cha


Muddy Waters & James Cotton - Got My Mojo Working


Jacques Brel - La Chanson des Vieux Amants


Billy Taylor, Duke Ellington e Willie the Lion - Perdido

18/12/08

Um tipo invade um país sob falsas alegações e é reeleito presidente, outro atira-lhe um par de sapatos e arrisca de 2 a 15 anos de cadeia


A cena do par de sapatos contra Bush anda a fazer correr muita tinta. Uma manifestação nos EUA exigia hoje a libertação de Muntazer al Zaidi, mas o franco-atirador iraquiano arrisca-se mesmo a ser condenado. Pela parte que me toca, não sendo eu a Imelda Marcos, considerem que os ditos me pertenciam.

17/12/08

O dartacão, agora a cores

Da série embirrações assumidas III

Eu e os meus amigos sabíamos que existiam televisões a cores, mas nunca tínhamos visto nenhuma. Quando alguns dos rapazes que andavam comigo na escola começaram a ter televisões a cores, não foi algo que nos surpreendesse. Nós sabíamos que existiam televisões a cores. No entanto, foi espantoso ver a abelha Maia ou o Dartacão pela primeira vez a cores.
Retirado do blogue do costume.

16/12/08

Non flere, non indignari, sed intellegere*


O vice-presidente norte-americano Dick Cheney veio defender publicamente a prática da tortura como forma de obter confissões. Quando interrogado sobre o "afogamento", o grande arquitecto da guerra do Iraque disse concordar com o método.
A questão da tortura coloca graves problemas morais. O mais óbvio é o da proporção: se um prisioneiro recusar confessar onde vai decorrer um atentado que levará à morte um determinado número de inocentes, será legítimo recorrer à tortura como forma de prevenir a mortandade?
Quem tiver uma visão utilitária da moral, dificilmente poderá responder pela negativa. Mas e se a ética não for uma pragmática, tão-só o que nos salva da barbárie?
*Não chorar, não se indignar, mas compreender, Espinosa

12/12/08

A guerra das cruzes sob o embalo do Alfa

Não sou cristã. Suponho que, mais coisa menos coisa, pelas razões que Bertrand Russell anunciou em 1927 (digo suponho porque há muito que não leio Why I Am Not a Christian). Quanto ao Ser Supremo, gosto de o imaginar algures entre o que disse Hemingway quando lhe perguntaram se acreditava em Deus – «À noite, no escuro, às vezes» – e a teologia solitária de Espinosa. Será um paradoxo, mas é assim.
O meu pai é ateu convicto, daqueles que têm como livro de cabeceira O Drama de Jean Barois. Eu não chego a tanto, não porque algo me convença do contrário, mas tão-só pelo défice de imaginação que me parece impregnar o ateísmo. Dito isto, não acredito em deuses de carne e osso, virgens engravidadas por pombas e muito menos em fogueiras como método de conversão. Cá em casa, as minhas filhas mais velhas chegaram a discutir se Cristo morrera enforcado ou levado por uma bala. Preferi não intervir no debate, que era aceso, e deixei passar o anacronismo da pólvora. Isto porque não gosto de cruzes, como terão percebido. Apesar disso, há guerras que não compro. Não compro, por exemplo, guerras fracturantes contra as ditas. Há quem faça questão nisso.
Sentado atrás de mim vinha um desses. Vivia em Monchique e não consegui perceber se era imigrante regressado com pronúncia enviesada, se estrangeiro convertido à língua camoniana. Tinha um filho que andara na escola primária em plena serra algarvia. Pelo que consegui ouvir, agora frequentava o ciclo. Em Monchique, o meu companheiro do Alfa indignara-se com o crucifixo pendurado na sala de aula. Fizera uma exposição. O Estado é laico e o Estado laico respondera-lhe que o estabelecimento devia agir em conformidade. Mais não lhe responderam. Depois soube da visita programada de um bispo e aí adoptara formas de luta mais firmes: Através de um amigo fiz saber à Fernanda Câncio o que se estava a passar. Os jornalistas apareceram e aquilo não ficou assim.
Continuo sem perceber a parte do «aquilo não ficou assim». Agora que religião é cultura, do contrário ninguém me convence. Apesar de Ockham, Giordano Bruno, Galileu e muitos mais. E, também por eles, nunca me apanharão em cruzadas. Por muito que abomine cruzes.

11/12/08

Publicidade descarada: já agora contribuam com qualquer coisinha s.f.f.

Joaninha Toma uma Decisão Depois do Jantar e Nós Ficamos a Saber Qual Foi.


– Qual foi o quê?
– A decisão.
– E o jantar?
– O jantar foi bife com batatas fritas.
– Ah!
Então, um dia, o dia mesmo antes de fazer sete anos, depois do jantar Joaninha tomou uma decisão, que é uma coisa que também se pode tomar durante o pequeno-almoço, ou a outra hora qualquer. Não é como os remédios. Aliás, para se tomar uma decisão nem é preciso estar doente. Basta que deixemos de ter dúvidas e passemos a ter certezas. Por exemplo, se perguntarmos ao lanche:
– O que é maior? Um hamster ou um elefante?
Claro que o elefante é de certeza maior, mesmo se o hámster for crescido e o elefante tiver acabado de nascer, até porque os elefantes bebés pesam 125 quilos e os hámsters nunca passam muito de 1 quilo, mesmo quando já são adultos.
Mas, voltando a Joaninha que, parece-me, não tinha hámsters. Nem elefantes, julgo eu.
«Não quero fazer sete anos!», eis a decisão que Joaninha tomou eram quase nove da noite, já tinha comido o bife e estava na sobremesa. Tinha agora de avisar os pais, para não comprarem as velas. Como a mãe não estava em casa (tinha ido ao jardim passear o Pata Branca), Joaninha foi ter com o pai à cozinha onde ele levava a loiça:
– Pai, estive a pensar… Eu não quero fazer sete anos!
– O quê? – perguntou o pai, porque com o barulho da água não a tinha percebido.
– Não quero fazer sete anos!
– Ora, que disparate!
– Não quero, não quero e não quero!
– E onde é que foste buscar uma ideia tão maluca?!
Joaninha ia responder que não tinha ido a lado nenhum buscar a ideia maluca porque ela estava muito bem, obrigada, dentro da sua própria cabeça, quando a mãe chegou da rua e o pai – crac! – partiu um prato.
– Lá partiste outra vez qualquer coisa! – disse a mãe.
E o pai disse:
– Para a próxima lavas tu a loiça!
E a mãe disse:
– Era só o que faltava! Eu faço o jantar, tu lavas a loiça!
E a Joaninha percebeu que iam começar naquilo do filme! notícias! filme! notícias!, só que desta vez ia ser loiça! jantar! loiça! jantar! e resolveu ir para a cama sem sequer lavar os dentes.
No outro dia de manhã, antes de fazer anos, porque só tinha nascido às cinco e meia da tarde, Joaninha tentou convencer a mãe:
– Mãe, não quero fazer sete anos!
A mãe, que estava – nhac! nhec! – muito distraída a comer os seus cereais, quase que se engasgou:
– Glup! Não queres fazer sete anos?!
– Não, não quero!
– Mas que ideia tão sem pés nem cabeça! Pois se já fizeste seis... Não podes saltar para os oito assim de qualquer maneira. Isso seria batota!
– Mas eu não quero fazer sete anos! – insistiu a Joaninha.
– Oh! Joaninha! Mas toda a gente faz anos.
– Então, eu não quero ser gente!
E foi, então, que aconteceu uma coisa extraordinária.
Zás! Trás! Pás!
Joaninha transformou-se em PEIXE!
Ora, acontece que os peixes só respiram debaixo de água, o que não sendo uma coisa tão extraordinária como Joaninha ter ficado coberta de lindas escamas azuis, também não deixa de ser fantástico. Como é que eles conseguem?
(...)
Joaninha, a menina que não queria ser gente, Ana Cristina Leonardo (texto); Álvaro Rosendo (ilustracões), Gradiva Júnior

06/12/08

Uma rapariga clássica aconselha clássicos

Enquanto vou ali e já venho, deixo-vos com alguns romances, contos e novelas publicados em 2008. A ordem é arbitrária.

OS NUS E OS MORTOS, Norman Mailer, Dom Quixote
O CÉU É DOS VIOLENTOS, Flannery O'Connor, Cavalo de Ferro
MYRA, Maria Velho da Costa, Assírio & Alvim
HISTÓRIAS DE AMOR, José Cardoso Pires, Edições Nelson de Matos
A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL, Gustave Flaubert, Relógio d'Água
CASAIS TROCADOS, COELHO ENRIQUECE e REGRESSA, COELHO, John Updike, Modo de Ler Editores e Livreiros Lda
O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA, António Lobo Antunes, Dom Quixote
A MÃO DIREITA DO DIABO e REQUIEM PARA D. QUIXOTE, Dennis McShade, Assirío & Alvim
O FESTIM DA ARANHA, vários autores, Assírio & Alvim
HISTÓRIAS DE AMOR, Robert Walser, Relógio D'Água
RAYUELA, Julio Cortázar, Cavalo de Ferro
PATRIMÓNIO e O FANTASMA SAI DE CENA, Philip Roth, Dom Quixote
DOM CASMURRO/ ESAÚ e JACÓ, Machado de Assis, Relógio D'Água
A fotografia da Marilyn foi roubada aqui.

05/12/08

O que eu não gosto de não gostar de um livro

«Com licença – eu tive um avô americano»: assim começa Os Três Desejos de Octávio C., novela de Pedro Eiras, ensaísta e dramaturgo nascido no Porto em 1975, vencedor há dois anos do Prémio Pen Clube (ensaio) com texto onde reunia quatro pesos pesados da literatura portuguesa: Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Desta vez, o registo é ficcional.
A primeira frase pode contar muito num livro. Anna Karénina é um exemplo clássico. Nem todos o terão lido, mas mesmo esses lhe reconhecerão o início: Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Apetece ler o resto. O mesmo para Com licença – eu tive um avô americano, embora, no romance de Pedro Eiras, o problema seja, precisamente, o resto.
Abalançando-se a uma ficção a que subjaz assumida intenção moral, no fim há uma lição a tirar. Mais coisa menos coisa, que nem sempre das boas intenções resultam bons resultados, um pouco à maneira da historieta judaica. Que é assim. Um passarinho cai do ninho num dia de frio. Pia desesperadamente até que passa um menino que o coloca num monte de estrume ainda quente. O passarinho, quentinho, desata a cantar em louvor do salvador. É então que passa uma raposa que, ao ouvi-lo, pula sobre ele e o devora.
A moral da história são três: 1. nem sempre aquele que te põe na merda te quer mal; 2. nem sempre aquele que te tira da merda te quer bem; 3. porquê cantar quando se está na merda? Transpondo para Os Três Desejos de Octávio C.
Octávio, o protagonista, recebe em adulto do avô americano uma velha candeia de azeite, que lhe é enviada pelo correio pelo U.S. Army juntamente com uma carta onde o informam da morte do familiar, atingido por uma bomba no Iraque. Ao contrário da vida do avô, que o leitor consegue imaginar cheia de aventuras, a dele nada tem de empolgante. Responsável pelos divórcios de uma Conservatória, que fica não com certeza por acaso na rua das Parcas, leva uma vida obscura, incapaz mesmo de se declarar a Anabela, a colega de escritório (lembramo-nos de Ruben A.).
E é então que o génio da candeia, que lhe aparece nos sonhos, lhe permite pedir três desejos. Rebentando pelas costuras de altruísmo, Octávio pensa na Humanidade antes de pensar em si próprio. Antes de pensar na Anabela. Escusado será dizer que tudo lhe correrá mal, a ele e aos seus congéneres terráqueos. A intriga, não sendo original, teria funcionado se o registo de comédia se tivesse conseguido manter ao longo das 165 páginas e a linguagem não fosse tão chã apesar das piscadelas de olho literárias. Não é o caso. Embora o fim também tenha graça. O problema reside no meio. E no meio teria de estar a virtude deste romance falhado.

04/12/08

Porque o prometido é devido: da vez em que estava a gamar matrículas

Encontrava-me eu uma noite muito sossegadinha de rabo para o ar a tentar desaparafusar uma matrícula quando o meu ângulo de visão – rasteiro – se viu invadido por um par de sapatos que lenta, silenciosa e resolutamente se aproximava de mim sem margem para erro. Com a respiração, os movimentos e a chave de fendas suspensas, deixei-me ficar assim, feita estátua de sal. Não sei se por ter enxergado que as meias do portador dos sapatos eram cada uma de sua cor ou se do incómodo da posição, o certo é que algo me trouxe de volta à vida. Dei por mim erguendo-me em slow motion enquanto atirava também sem pressa e com o mínimo de barulho o material de trabalho para dentro do saco que apanhara do chão e sustinha agora dramaticamente junto ao peito como se ele me protegesse do frio que não fazia. Os sapatos estacaram a dois metros mais ou menos e o meu olhar tímido não ultrapassara ainda a linha dos joelhos da figura que se erguia imóvel à minha frente quando uma voz me obrigou a reconhecer que estava definitivamente lixada. A voz, trémula, dizia assim: «Quietinha, senão disparo!»
Se a voz tremia, o mesmo se diga da mão, acometida de tosse convulsa: subia e descia em espasmos irregulares, e ora fazia mira aos meus olhos ora me visava o estômago. Enquanto isso, o guarda-nocturno – porque de um guarda-nocturno se tratava – não parava de me ameaçar: «Se te mexes, disparo!» Devo ter ido buscar sangue-frio às histórias de partisans que consumia então com ferrenha militância no escurinho do Palácio Foz: «Calma homem! Veja lá se tem calma senão isso dispara mesmo!» Atrás de nós, sobre o que teria sido um terreno agrícola, achava-se agora o corpo descarnado de uma obra. Pedras, tijolo, ferros retorcidos e paredes inacabadas que me pareciam o local ideal para despejar o material de trabalho. E enquanto estávamos para ali os dois, eu abraçada ao saco, ele escorado ao revólver, passou uma motorizada que o guarda-nocturno fez parar com grande determinação, dando indicações ao motard para que fosse chamar a polícia. Não havia telemóveis.
Aproveitei o interregno para dizer que tinha de fazer chichi. O motard, se já estava baralhado, mais baralhado ficou: «O senhor está-me a deixar nervosa com a arma! Vou fazer chichi e já venho!» E fui. Em vez disso esvaziei o saco dos aprestos comprometedores, conservei os documentos e a bolsa de maquilhagem, e voltei. Não tinha por onde fugir e ser baleada não fazia parte dos planos.
Passado algum tempo chegou, em linguagem de época, o nívea da bófia. «Então, o que é que se passa aqui?», perguntou a autoridade naquele seu modo clássico habitual. Cada um de nós deu a sua versão dos acontecimentos. Eu, que ia descansada para casa quando um louco me saltara ao caminho com uma arma na mão ameaçando-me de morte (era quase tudo verdade). Ele, que ia descansado na ronda quando dera de caras com a meliante em presença que andava por ali a desaparafusar matrículas (também não era tudo mentira). Entrei no carro da polícia para ser conduzida à esquadra. Comecei a ver a vida a andar para trás, seja o que for que isso queira dizer, mas pelo caminho um dos polícias confortou-me: «Não se preocupe, não é a primeira vez que temos chatices com o velho. Com a idade ficou um pouco destrambelhado...».
Estava eu sentada na esquadra pronta para assinar uns papéis e ir dormir – e até me tinham perguntado se quereria tomar algo – quando deu entrada de rompante o meu contraditor. Mal me viu, colocou shakesperianamente o dedo em riste e disse: «E ela foi despejar o material na obra... De certeza!» Era dos duros.
Regressaram à obra – e ao partir um dos polícias pediu-me desculpa pelo incómodo acrescido – e voltaram, azar dos Távoras, com os meus despojos. Fui revistada por uma mulher polícia que já não foi assim tão simpática e interrogada por um outro que me chamou mentirosa. Não gostei, até porque mentirosa é coisa que não sou mesmo, e foi depois disso que eu, recorrendo de novo ao meu imaginário cinéfilo, disse que tinha direito a um telefonema e que queria telefonar para casa. Telefonei à minha mãe e pouco depois ela aparecia. Esbaforida. Como eu era menor, antes de nos virmos embora levou uma descompostura do chefe. Depois deu-me ela uma descompostura durante o pequeno-almoço que com aquilo tudo eram horas. Desde esse dia nunca mais gamei matrículas, nem para a causa nem por conta própria. Mas também vos digo, e isto pensei-o logo: aquele guarda-nocturno era um perigo e um dia por engano ainda matava alguém.

03/12/08

Foi debaixo do vulcão que Lowry concluiu que no se puede vivir sin amar


Agustín Lara, Noche de ronda


Agustín Lara, Arrancame la vida


Agustín Lara, Piensa en mí


Agustín Lara, Solamente una vez

Não podia deixar passar em branco a anedota mais seca do ano face à qual a nossa Manuela Ferreira Leite devia ser nomeada a rainha da comédia

Iraq war my biggest regret, admitiu o Bush Júnior, a umas semanas de se pirar da Casa Branca. E a anedota só não tem mesmo graça por causa disto.*
* Infelizmente, os números que se exibem na imagem estão muito desactualizados; no momento em que publico este post já foram substituídos pela variável 89, 544 - 97, 762

02/12/08

E foi ele de Galveias ao México... (também pode ser o caso de ter bebido mescal marado mas acho pouco provável)

Da série embirrações assumidas II
Seguindo uma lebre levantada pela Ana, fui espreitar o blog daquele cujo nome evito pronunciar. Foi lá que encontrei estas pérolas.
«ALGUMAS COISAS QUE APRENDI ONTEM SOBRE O MÉXICO»
«Os emos no México são lindos. Existem em toda a parte e falam com voz muito frágil enquanto levam a mão à testa para quase afastar a franja. Há emos adultos. Nunca tive nada contra emos, agora tenho ainda menos. Além disso, aqui até há manifestações de emos, de que já ouvi falar bastante (...).*
«Nas estações de metro e nas carruagens de metro, há zonas onde só é permitida a entrada a mulheres e a crianças. Na estação, essas zonas estão separadas por um muro transparente. De um lado, só existem mulheres e crianças, do outro estão os homens, algumas mulheres e algumas crianças.»
*Sobre emos, eu, proprietária da Pastelaria, aconselho vivamente a leitura desta notícia que dá conta de confrontos entre emos, por um lado, punks, darks e góticos por outro, com os hare krishnas no meio.
E JÁ AGORA UM BOCADINHO DO MEU MÉXICO*

Chavela Vargas, Quisiera amarte menos

*que o José Agostinho Baptista me fez conhecer há muitos anos, numa época em que ainda não havia emos nem pérolas peixoteiras

30/11/08

Continuação das memórias na alcova: da vez em que a minha mãe foi jantar à António Maria Cardoso e conheceu o Sacchetti

Em minha casa foi tudo preso pelo menos uma vez. A qualidade das estadias na cadeia variou muito, com o meu pai a bater o recorde de mais ou menos três anos entre os Fortes de Caxias e Peniche – o de Peniche, consideravelmente mais húmido.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para onde andam agora a construir um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, em dia muito fácil de fixar. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull. A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a «Seara Nova», que a ânsia pelo poder (absoluto) do PCP haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores. Alguém chegou à «Seara...» com a notícia fresquinha, testemunhada em presença pela equipa que tratava Salazar desde que ele falhara a cadeira. Transposto o cepticismo que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar). A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): «Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!». No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: «Acabaram as filmagens do “Solar das Oliveiras”. À noite há festa!». E pronto, o meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a «Seara...» é invadida por agentes da polícia política que solicitam – sem grandes faz favor ou por obséquio – que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar. A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto «não fosse aquilo ter para lá alguma droga!». A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade. A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos na Primavera estava, e com contactos telefónicos à distância de um só clique) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: «A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!». Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse «grande homem de quem já sentimos saudades!».
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma. Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.

28/11/08

A prova que um bom escritor também pode ser um idiota

Se me perguntassem por nomes de escritores, Jorge Luis Borges estaria entre os primeiros. Lembro-me, aliás, de abandonar a conferência que ele deu há uns anos na Faculdade de Letras, incomodada até ao vómito com a feira de vaidosos que, tomando a palavra para simular perguntas, esqueciam que tinham pela frente um génio (e eu não sou nada de ver génios a cada esquina...). Lembro-me também de uma entrevista brilhante que lhe foi feita pela Lourdes Féria, salvo erro para o Diário de Lisboa, e lembro-me dela me contar os meandros da conversa.
Lourdes Féria tinha ido a Madrid entrevistar Mick Jagger. Acontece que os Rolling Stones se tinham fechado em copas. Por uma daquelas coincidências que nem a Vila-Matas ocorreria, Lourdes soube que Borges estava hospedado no mesmo hotel do que ela. Foi tentar a sorte e bateu-lhe à porta. E Borges falou. Sobre tudo. Até sobre os Rolling Stones.

Lembrei-me disto a propósito destas declarações de V. S. Naipaul (de quem foi há pouco publicada uma biografia). Disse ele sobre o escritor argentino: Não sou nada como Borges. Acho que Borges é um escritor muito limitado (...). E era cego, claro. Eu não sou cego. Faz uma grande diferença, porque o homem cego vive internamente, enquanto eu sempre vivi com o mundo que vejo, que conheço (o que me recordou uma entrevista que fiz ao Luís Sepúlveda onde o chileno afirmou, do alto da sua mediocridade, que afinal Borges não merecia o Nobel porque escrevia sempre o mesmo livro).
Agora se me encostassem uma pistola à cabeça e me obrigassem a escolher ― ou o mundo sado-masoquista de um ou o imaginário luminoso do outro ― eu sei bem o que escolheria. A Borges, o cego, bastava-lhe ter escrito estes versos. Definitivos.
Yo, que tantos hombres he sido/ no he sido nunca/ aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach.

27/11/08

Em louvor das modas & bordados: porque há outros assuntos menos fúteis do que a política que também merecem o meu interese

A ex-comunista Miuccia Prada foi absolutamente franca acerca do assunto: Não acredito em pessoas que dizem que roupa não é importante. Perante este quase jacobinismo, e ainda que certos argumentos de autoridade possuam a solidez de uma casca de banana, não resisto a invocar em defesa da signora Prada a arte certeira de Twain: Clothes make the man. Naked people have little or no influence in society.
Pretende o anterior parágrafo introduzir o tema. E o tema é: será a moda um capítulo essencial da ditadura imagética? Para tentar responder, três interrogações prévias en passant. O que é moda? O que é ditadura? O que é imagem?
Segundo a proverbial definição de Jean Cocteau,
la mode, c’est ce qui se démode, o que concorda em absoluto com a máxima de Coco Chanel: A moda passa, o estilo permanece. O que é ditadura? Essa parece fácil. Mais coisa menos coisa, resume-se a um quadro de pensamento único (segundo os seus acólitos tendencialmente ad aeternum…) em que alguém manda e eu obedeço. Imagem? Conceito de contornos menos claros, talvez nos baste entendê-la como a representação visual de um objecto ou de uma ideia.
Chegados aqui, estrebucha um pouco o juízo de que a moda serve a ditadura da imagem. Desde logo, porque aquela é na essência efémera e toda e qualquer ditadura anseia por imitar a Toyota: Vem para Ficar (cito um slogan português de 1969 que gozou de considerável sucesso ― a prova é que até eu me lembro dele). Depois, porque as imagens de moda são cada vez mais plurais; fenómeno que tem, aliás, fácil justificação: se há algo que não casa com a moda é o modelo uniforme, que sucede ser o fardamento dilecto dos ditadores das mais variadas tendências. Ou como colateralmente se escreve em História da Beleza, obra colectiva dirigida por Umberto Eco: Os media já não apresentam um ideal único de beleza. Os meios de comunicação tanto propõem a opulência de Mae West como a graça anoréxica das últimas modelos; a beleza negra de Naomi Campbell e a nórdica de Claudia Schiffer; a mulher fatal e a rapariga frágil ao estilo de Julia Roberts. O nosso viajante do futuro já não poderá diferenciar o ideal estético difundido pelos media. Será obrigado a render-se perante a orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo (…). De onde virá, então, a crença generalizada de que a moda é um factor de opressão?

Vou dar um exemplo. A minha tia Raquel, uma leiga em semiótica que intuitivamente sabia como um vestido pode significar muitas coisas, tinha a opinião que se segue: Quem quer ser bonito deixa-se esfolar! Escusado será dizer que cuidava da aparência com apuro hollywoodesco e que, tão-pouco dada às letras, teria subscrito, voluntária, a desafectação confessa de Clarice Lispector: Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios. Seriam, tanto a tia Raquel como a conceituada escritora, fashion victims avant la lettre? Porque é nisso, afinal, que todos estão a pensar quando falam de ditadura da imagem relacionando-a com moda.
Claro que «ditadura da imagem» é tecedura provida de muito mais elasticidade. Tanto pode compreender os manuais escolares (polvilhados de «bonecos») como a anorexia nervosa (disfunção alimentar grave que define um quadro neurótico, e cuja origem tem vindo a ser imputada, com alguma ligeireza, aos modelos em passerelle); tanto abarca as entorses televisivas (a virtualidade do meio a substituir-se ao real) como a manipulação publicitária (produtos fetiche causa de (in)satisfação narcísica), como, como…
Afinal, num mundo saturado de signos que vertiginosamente se auto-reproduzem, gerando um efeito de hiper-realidade, talvez seja difícil, senão mesmo impossível, escaparmos às imagens e às suas representações simbólicas (mas, ainda agora, a crise financeira veio provar que uma hipoteca não deixa de ser uma hipoteca só porque alguém a mascara sob títulos nobiliárquicos como «Structured Investment Vehicles»/SIV). Mal comparado: um vestido comprado numa grande superfície não passa a ser Alber Elbaz só por lembrar vagamente um desenho da Lanvin.

Voltando às fashion victim e à tia. No caso dela, pelo seguinte. A todos os partidários de que a actual ditadura imagética engendra mulheres supliciadas por saltos-agulha funâmbulos, pinças contorcionadas, escovas de rímel cerdosas, escalpes faciais sanguíneos ou jejuns sacrificatórios, apenas vos digo isto: haviam de a ter conhecido! Carradas de limão nos olhos para lhes puxar o brilho. Pastos sebosos na cara. Cabelos engomados a quente. Soutiens armadilhados. Depilação nauseante. Cintas asmáticas. Receitas cabalísticas. Mezinhas encriptadas. Alguém falou n’O Jardim dos Suplícios? Octave Mirbeau não alcançaria sequer o primeiro grau maçónico se tivesse de se medir com a geração das mulheres da filha da minha avó!
Aqui há uns anos, o poeta Herberto Helder contava uma história que era assim: parara a carrinha de livros da Gulbenkian num descampado alentejano, quando uma camponesa se acercou da dita e se pôs a folhear os títulos. Depois de muito folhear, requisitou dois: Pode-se Modificar o Homem?, do biólogo francês Jean Rostand, e Estética, de Hegel. Surpreendido com a preferência, e embora correndo o risco de parecer snob, o livreiro motorizado perguntou-lhe o motivo da escolha. A resposta foi simples. Com o primeiro, pretendia aprender a lidar melhor com o seu homem; com o segundo, a pôr-se mais bonita para ele. Que moral podemos tirar daqui? Por um lado, que os signos, como queria Saussure, estão sujeitos à lei da arbitrariedade, por outro, que mesmo no deserto de Mário Lino as mulheres preferem estar bonitas a feias.
E agora pergunto eu. O que mais as favorece? Por exemplo: produtos de beleza La Mer, maquilhagem Shiseido e roupinha Hermès, ou qualquer um dos referidos itens comprados no supermercado? Se este texto não se dirigisse aos dois sexos, seria chegada a altura de interpelar as leitoras: «Minhas amigas, que não nos contem patranhas! A ditadura não é da moda. A ditadura é do dinheiro.» (ou como disse a Dolly Parton: You’d be surprised how much it costs to look this cheap!) Não fora isto, poucos se importariam em tornar-se fashionistas, pelo menos de vez em quando.
O termo fashion victim tem, e com justeza, conotações pejorativas.Terá sido inventado por Oscar de La Renta para definir alguém que, desprovido de estilo e carisma, se rende acriticamente a todas as tendências, sobretudo àquelas que calcula estarem na mó de cima. A marca é tudo e quanto mais cara melhor, poderia resumir o credo das fashion victims. As quais, se quando se olham ao espelho escutam sempre uma voz pronunciando as palavras mágicas ― Em todo o mundo não existe beleza maior! ―, na realidade não deixam de ser o melhor álibi para o sarcasmo de Wilde: A moda é algo tão intoleravelmente feio que tem de ser mudado todos os seis meses.
Mas agora vou confessar-vos uma coisa. É verdade que na série Sexo na Cidade todo o guarda-roupa estava irrepreensivelmente correcto. Mas quem se lembra de Absolutamente Fabulosas!, talvez possa preferir a extravagância demencial de Edwina Monsoon, apesar de, como alguém escreveu, ela parecer por vezes um batido de Elton John com corneto de morango. O que nos conduz até John Galliano, o designer da Dior que em tempos confessou: Simplicity is a such a bore! Sometimes the real fun is in bad taste. O que, por seu turno, nos remete para uma frase de sinal contrário: Gostava de ter inventado as ‘jeans’. Têm carácter, ‘sex appeal’, simplicidade ― tudo o que desejo para as minhas roupas, Yves Saint Laurent.

O parágrafo anterior reconduz-nos ao ponto de partida. Face a tanta diversidade de estilos, atitudes e tendências, será legítimo falar de uma ditadura? Será legítimo insistir em que a moda escraviza as mulheres (e, de acordo com os números de vendas, cada vez mais homens)? Fará sentido continuar a difamar uma indústria que vive de vender beleza (mesmo que a preços obscenos)?
Não desenho roupas, desenho sonhos, resumiu Ralph Lauren. E, muito antes dele, disse Jean Cocteau: A arte produz coisas feias que, não raras vezes, se tornam bonitas com o tempo. A moda, ao invés, produz coisas bonitas que, com o tempo, se tornam feias. Falhou apenas Cocteau em dois dados do problema. Primeiro, o apelo estético incólume de algumas peças (basta pensar em Cristóbal Balenciaga…), depois, a capacidade da moda para se reinventar a si própria (já vestimos bocas-de-sino, já abominámos bocas-de-sino, e que eu apanhe já outra constipação se, com diferentes alinhavos, não vamos voltar a usá-las!).

Ao contrário das mulheres do tempo da tia Raquel ― e podem crer que eu não a inventei ―, essas sim, sujeitas ao espartilho da moda (mesmo se o espartilho fora abolido algumas décadas antes, no início do século XX), os consumidores de hoje transitam livremente entre códigos. Para expor a ideia de forma visual, já que uma imagem vale mais de mil palavras (provérbio oriental que até Mao Tsé-tung honrou ao deixar-se fotografar a tomar banho no rio Yang-Tsé em 1966, provando às massas, e aos opositores da Revolução Cultural, que ainda muita água passaria por baixo das pontes até ele abandonar o poder). Que semelhanças se poderão encontrar entre os estilos de Madonna (já em si mesmo plural), Gisele Bündchen, Kate Moss, Agyness Deyn, Jennifer Lopez, Sophia Coppola, Julian Moore, e etc., só para dar uns exemplos? Talvez só a que reverte desta definição da actriz Sophia Loren: O vestido de uma mulher deve ser como uma cerca de arame farpado: serve o propósito mas não tapa a vista.
No actual panorama da moda, tal qual a beleza de que falava Eco, as ofertas são polimórficas e polissémicas. É verdade que não facilitam a vida ao consumidor que, quando pouco seguro, se sentirá perdido: When in doubt wear red, aconselhava Bill Blass, mas já a Ivone Silva subia ao palco e dizia: Com um simples vestido preto eu nunca me comprometo. E a dúvida fica em aberto. Coisa que seria impossível numa ditadura.

26/11/08

Se isto foi tudo por causa de um vulgar assédio sexual na Praça da Alegria imagine-se se eu contasse daquela vez em que gamei matrículas

Ontem, por causa deste post [quero dizer, dos links com que tão generosamente vários blogues agraciaram este post], o meu mui modesto site meter ensandeceu*. Agradecida!
(*não estranhem as datas; o contador está desde sempre 12 horas adiantado)

25/11/08

Recuerdos de uma data histórica: 25 de Novembro? 11 de Março? Who cares?

Queríeis conversa? Então vamos lá.
Lembrei-me deste incidente por causa do histórico 25 de Novembro. E por deferência aos leitores mais novos, concedo um preâmbulo.
Houve o 5 de Outubro, o 28 de Maio, o 25 de Abril, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Nas duas primeiras datas ainda não era nascida e tudo o que sei foi de ouvir dizer. Do 25 de Abril já falei e falarei noutra altura. Quanto às que restam, despindo a coisa de atavios, era mais ou menos assim: no 11 de Março os cabrões do PCP não tomaram o poder por pouco; no 25 de Novembro os cabrões dos reaças tomaram o poder e pronto. Apesar das eventuais divergências quanto a este meu apanhado, o que interessa é que, em ambos os dias, as hostes fervilhavam.
A história que vos conto, julgo ter tido lugar no 25 de Novembro mas para o caso tanto faz. Aconteceu (mesmo que tenha acontecido durante o 11 de Março).
O nosso quartel-general, que também o tínhamos, situava-se nas instalações da Faculdade de Ciências, ali à Rua da Escola Politécnica, onde depois se vieram a expor restos de dinossauros e cadáveres chineses. Era um bom quartel-general. Tinha música (na «sonora»), uma cantina, que apesar das baratas e dos ratos podia ser tardiamente assaltada, e era muito central. A mim dava-me bastante jeito porque vinha de Cascais.
Na noite dos acontecimentos, andava por ali um formigueiro de gente. Os camaradas mais experientes mantinham-se em permanente contacto com os camaradas ainda mais experientes (que estariam noutro quartel-general muito mais fora de mão) e a soldadesca aguardava ruidosamente instruções. A dada altura, constituíram-se piquetes que deveriam deslocar-se a pontos estratégicos da cidade em recolha de movimentos suspeitos. Não me perguntem o quê. Era de noite.
Fosse quem fosse o sacana responsável pela distribuição dos lugares, a mim calhou-me a Quarta Esquadra. A Quarta Esquadra, para quem não sabe, fica na Praça da Alegria, um ponto da capital dado a engates e outros ilícitos. Sem avaliar bem o destino que me calhara em sorte (trocara há anos as artérias lisboetas pelo litoral cascalense...), lá fui, intrépida militante, vigiar a PSP.
Chegada ao local (e ainda hoje não me consigo lembrar porque raio o meu piquete era só eu…), sentei-me num banco no jardim, de olho no inimigo. Indiferente ao momento histórico, andava por ali um formigueiro de gente. Nos afazeres do costume. Quanto aos polícias, pareciam calmos, nada havendo a assinalar. Foi então que, ocupando o meu posto de vigia há muito menos de uma hora, comecei a ser abordada pelos regular fellows da praça, apesar da total falta de glam com que nos vestíamos na época: «oh filha, és nova aqui?», «queres um cigarro?», «quanto levas?», «fazes desconto?» e outros vitupérios bastante mais asneados.
Sem saber o que responder aos passantes – e alguns sentavam-se – acabaria por abandonar o meu posto, traindo assim a confiança que em mim haviam depositado os camaradas mais experientes e os mais experientes ainda. Naquela noite, confesso, não estive à altura da revolução.

24/11/08

Qualquer um que tenha lido romances ou visto filmes em número suficiente percebe isto

É importante ver Sócrates ao lado de Medvedev para compreender a natureza de Sócrates. Sócrates é um perigoso prepotente inculto. Ao lado de Medvedev declarou: «A Geórgia é uma página virada» (...). Compreende-se o interesse nacional da paragem técnica de Medvedev e até se compreende que o primeiro-ministro queira ser um bom anfitrião. Mas Sócrates vai sempre mais além. Ele é o dono da História, ou pelo menos está com os donos da História (...). Permite-se falar grosso e dizer, quando Medvedev está ao lado, as coisas fortes que Medvedev gosta de ouvir, para que os fracos saibam o seu lugar (...). Se Sócrates tivesse gás e petróleo seria um Putin. Se Sócrates tivesse um Abramovic em vez de um Oliveira e Costa seria um Putin. Se Sócrates tivesse um país de gente calada e de cerviz vergada como os seus apoiantes socialistas, que de socialistas só têm a lapela fracturante, seria um Salazar reciclado, com jogging e namoradinha.
Publicado aqui a 22 de Novembro.

Aniversário de Herberto Helder (foi ontem)

se do fundo da garganta aos dentes a areia do teu nome,
se riscasse com a abrasadura, se
em cima e em baixo mexido às escuras,
o forno com a mão a ver se ela podia
que uma púrpura em flor fosse até ao coração,
unhas e tudo,
que estremecesse, não por dito mas sabido
contra ti, e por artes
antigas trazer o ar, fazer uma
iluminação:
mudar o mundo para que o nome coubesse,
vivaz, tocado, fértil,
houvesse um dom inseparável, música, verbo:
se eu pudesse, se a terra
se atrasasse,
se pudesse em amarga língua portuguesa com o teu nome em qualquer
parte,
para eu mesmo riscar contra ti,
raiar contra ti,
sob
serapilheiras de sangue

23/11/08

I beg your pardon?

Palavras do primeiro-ministro José Sócrates (e que eu continue agarrada aos kleenex pelo menos até aos Reis se isto não for verdade).
O referido, citado pela LUSA, garantiu ontem em Valongo que os portugueses começam a ver os bons resultados da reforma efectuada na saúde e que tanta incompreensão e obstáculos teve de enfrentar.
Esta urgência básica que hoje visitamos, que abre com os mais modernos sistemas de triagem, equipamentos técnicos e quadros, só existe porque nós realizámos uma reforma das urgências no nosso país, afirmou enquanto inaugurava a ampliação do Hospital Nossa Senhora da Conceição. E acrescentou que o novo serviço ficava antes de mais a dever-se a um governo que não se deixou intimidar pelo que se dizia e prossegue uma via reformista de mudança.
Isto foi dito ontem.
Entretanto, no passado dia 13 de Novembro, havia sido divulgado em Bruxelas um estudo realizado pela Health Consumer Powerhouse que colocava Portugal na cauda da Europa em termos de cuidados de saúde. Em 31 países analisados, Portugal ficava-se pelo 26º lugar, apenas à frente da Roménia, Bulgária, Croácia, Macedónia e Letónia, com a agravante de em 2007 ter ainda assim conseguido a 19ª posicão e em 2006 a 16ª.
Conclusão: ou os tipos da Health Consumer Powerhouse são uma cambada de aldrabões ou isto numa semana foi tudo corrido a viagra.

22/11/08

Enquanto o país se assombra com um Loureiro e uma Oliveira eu dou continuidade às memórias na alcova, derivado ao raio de uma gripe ou lá o que seja

A mim não foi um qualquer quem me recrutou. Não senhor. O rapaz (na altura) havia de palmilhar uma via ascensional que, não o tendo conduzido a Fátima, o levou ao Santo Sepulcro. E para quê falar com Nossa Senhora quando se pode falar com Deus? Foi o que eu pensei. Estive uns anos sem saber dele. Até que soube. Estava bastante mais gordo. De resto estava igual.
Vou-vos, então, contar. Na altura ele não dirigia jornal coisíssima nenhuma. Era tão estudante como eu. Um dia chegou ao pé de mim e disse-me: «Temos que falar!». O tom era imperativo e conspirativo. Revelava que havia coisa. A certa altura chamou-me «camarada!» e eu senti que o momento era solene: «Camarada! Pensamos que chegou a altura de entrares para a UEC (ml). Não tens de responder já».
Aqueles que me lêem e se lembram d’ A Vida de Brian (Are you the Judean People's Front? Fuck off! What? Judean People's Front. We're the People's Front of Judea! Judean People's Front. Cawk. etc.) talvez consigam perceber.
Um: que o grande inimigo da União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) era a União dos Estudantes Comunistas. Dois: que uma jovem ser convidada a entrar na União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) seria o equivalente, na actualidade, a uma jovem ser convidada a entrar numa telenovela da SIC. Como protagonista. Devem-me ter tremido as pernas. Se não logo, depois. Já perceberão porquê. Respondi gaguejando que sim. E mais tarde combinou-se um encontro. Clandestino, como soía.
Não é preciso ter lido a Zita para saber que tais encontros envolviam preliminares kamasutrianos. Havia uma senha, como nos spy games, e havia, sobretudo, «o percurso». O percurso era um preâmbulo peripatético ao encontro, durante o qual todos os militantes tinham de atestar que a distância mais curta entre dois pontos nunca era uma linha recta. Por exemplo: eu estava no Cais do Sodré e queria ir para a Graça. Certo e certinho que havia de passar pelas Avenidas Novas com desvio pela Calçada da Estrela.
Abreviando, apanhámos o 28. Que estava longe de ser uma atracção turística e, como era uso então, seguia de portas abertas. Combinámos. Ali por perto da Calçada de São Vicente, quando a velocidade se encurta e o eléctrico faz corpo com o casario, pularíamos em andamento, no intuito de galgar umas escadas de que esqueci o nome. Aquiesci e lá montámos o dito, no meu caso tomada pela ânsia de ― imitando o voo do meu angariador ―mergulhar de cabeça no mundo dos ungidos.
E mergulhei literalmente de cabeça. Porque apesar do sim! sim! voluntarioso com que anuíra às instruções, a verdade é que nunca saltara de eléctrico. Quando finalmente cheguei, coxa, ao termo das escadas, o rapaz que muito mais tarde viria a ser, to say the least, um afamado e anafado director de jornal deu ― sem esconder a contrariedade ― por cancelado o encontro.
A coisa não começava bem e havia de terminar pior.

21/11/08

Sim eu sei que o Conan O'Brien não é a Manuela Ferreira Leite mas ainda assim tem piada

Now that Barack Obama has been elected president, producers in Hollywood say they think America is ready for a black James Bond and a black Wonder Woman. Isn't that cool? Yeah, hell, America may even be ready for a black Michael Jackson - (Conan O'Brien)

20/11/08

Dois poemas com sexo e escusam de se pôr com ideias

Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meus Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade


Com Licença Poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado

19/11/08

Automedicação

Portugal ultrapassa – na velocidade dos disparates – o gigantesco acelerador de partículas sediado na Confederação Helvética. Se Eça e Ramalho fossem vivos, a biblioteca de Pacheco Pereira (mesmo somada à do Graça Moura) seria insuficiente para conter os números d' As Farpas.
Ainda não refeitos do encarniçamento da ministra da educação e ultrapassada a distracção de Constâncio, levamos com o dá e tira do «Magalhães» às crianças, ouvimos Ferreira Leite tentar ter piada em público e acabamos a confirmar que o iluminado Teixeira dos Santos é o pior ministro das finanças da UE.
Meus amigos, eu ando doente e confesso-vos que isto não ajuda nada! Vale-me a leitura, em jeito de anti-histamínico.

«I.
Myra atravessou os carris desconjuntados em direcção ao mar.
Cresciam ervas e tojo e havia chorões apodrecidos nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. Corria contra o vento, procurando saltar as arestas de cascalho e os cacos de vidro, pulando alto a entreter o frio e o seu desgosto.
O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e vermelhas na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.
Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco esburacado que a mãe lhe fazia usar em casa e que dizia que viera de lá. Myra lembrou-se da neve em cima dos telhados de ouro e loiça. E os blinis que não tinham nome nesta terra. Ao princípio nada tinha nome. E a avó, com ela pela mão à porta das igrejas, o cheiro de mil velas, a estender-lhe a mão, a esconder-lhe a mão. Tanto medo. […]»
Maria Velho da Costa, Myra, 2008, Assírio & Alvim (o começo...)

Eu também mas é mais ao contrário e nem lhe perguntava nada

Da série embirrações assumidas
«Cada vez que participo num programa de televisão em directo, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. [...] Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.»
encontrado no blog do josé luís peixoto, espaço que prometo passar a visitar com regularidade a partir de agora. assim me dê deus saúde e paciência.

18/11/08

A propósito de andarem por aí uns putos a lançar ovos e outros víveres a representantes do Estado

No meu tempo os estudantes não lançavam produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. No meu tempo eram mais eles a levar com suspensões, expulsões e detenções e, sem querer puxar ao sentimento, com cargas da polícia. Eu própria fui suspensa por três dias, pelo desplante de ter sido colado um cartaz à entrada do meu liceu, convocando uma RGA. A escola paralisou por tão pouco e no dia seguinte fui levada à presença do reitor, não sem antes ter desfrutado dos meus fifteen minutes de fama – contados a partir da saída do comboio até à entrada no estabelecimento: «Foi ela! Foi ela! Foi ela!».
O reitor, com Tomás e Salazar (não me lembro do Caetano…) pairando omniscientes pelo austero gabinete, anunciou que ia chamar o meu pai. O meu pai tinha estado preso em Peniche e não simpatizava com nenhum dos retratados. Assim, o insolente à-vontade com que retorqui à autoridade: «Então, chame!» nada transpirava de heróico. O meu pai, quando eu lhe disse: «Fui suspensa!», disse: «Grande filha!». E abraçou-me.
Nem todos os finais se mostravam tão ditosos. Havia quem, devido às suspensões, perdesse o ano por faltas, e havia quem fosse logo para a rua sem castigos intercalares. Também havia prisões. Uma vez foram presos 150 de uma vez só, no Hospital Santa Maria. Eu, com a minha proverbial incapacidade para lidar com a british punctuality, atrasei-me. Quando, ofegante, lá vislumbrei Económicas, para onde fora marcada inicialmente a reunião, verifiquei ser muito tarde para ir a Medicina.
Não fui e não fui dentro, mas recordo muito bem os rapazes de cabelo rapado à escovinha, um corte que lhes fora gentilmente ofertado pelo barbeiro das caves do Governo Civil. As raparigas não denunciavam quaisquer sinais exteriores e muitos dos rapazes optaram por usar gorros na cabeça – estávamos no Inverno de 1973.
Não posso garantir que Bárcia, o nosso bufo exclusivo, tenha sido engavetado na altura. Julgo que sim. Era um sujeito curioso. Magro, alto, de orelhas caracteristicamente afastadas, usava gabardines à pide, indumentária à qual se referia de modo jocoso, sublinhando que parecia mesmo um. A carreira dele teve um final burlesco.
Já depois do 25 de Abril, a mãe contactou ex-colegas dizendo-lhes que, incompreensivelmente, o filho tinha sido detido. Apressámo-nos a acalmá-la, alvitrando que fora o caso de um engano: perante os documentos incriminatórios, que incluíam os nomes da estudantada escarrapachados em relatórios escritos de motu proprio, ainda hoje estou para saber se alguém teve coragem de telefonar à senhora.
Avistámo-lo depois, bastante mais tarde, à saída de um velório na Basílica da Estrela. Num mini a cair de podre, encetou-se uma perseguição ao Bárcia pelas ruas de Campo de Ourique, mas acabámos por lhe perder o rasto ali para os lados do Canas.
Éramos putos. Não lançávamos, industriados por obscuros «adversários da política educativa do Governo», produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. Fazíamos outras coisas. E que não se me leve a mal a pergunta: o que fariam em jovens a digníssima ministra da educação e seus inefáveis secretários?

17/11/08

Podem-me chamar reaccionária mas eu gostei muito de ir à escola

Fui uma privilegiada e não vou pedir desculpa por isso. A partir dos cinco anos frequentei um colégio particular, ali para os lados de Belém. Conhecido pela "Escola do Senhor Gomes", na realidade, se a memória não me falha, chamava-se Externato do Rio Seco. Quanto ao Senhor Gomes, era um reformado da Marinha com ideias arejadas sobre educação. Para a época.
Apesar do colégio ser feminino e usarmos todas batas de folhos, a música e a ginástica eram obrigatórias, assim como as descidas ao laboratório, a partir da terceira classe, e as visitas de estudo, que incluíam invariavelmente os Jerónimos e os jardins da frente. Era vê-lo, já velho mas rijo de carnes, a mandar parar as viaturas para que deixassem passar as meninas! E as meninas lá passavam em filas de duas a duas e mãos obrigatoriamente dadas, em direcção à Fonte Luminosa que mudava de cor e era uma das atracções da pátria.
No colégio ― que hoje julgo albergar um condomínio ― , então uma casa senhorial com amplas cavalariças, adaptadas a salão de ginástica em dias de frio e chuva, e edifício principal, com pátio e entrada no alto de uma pequena escadaria de pedra, transformado num espaço despido de paredes onde se alojavam as quatro classes em open space, havia carteiras individuais de madeira com tampo inclinado para manter as costas direitas, tinteiro embutido e ranhura para colocar a caneta. Que era de aparo.
Só na quarta classe se permitia o uso de tinta permanente e as Bic já andava eu no liceu. Aprendíamos a escrever copiando abecedários góticos transparentes e a partir do segundo ano dar mais de três erros num ditado seria o correspondente, nos dias de hoje, a um diagnóstico precoce de dislexia (isto não foi assim há tanto tempo; os que me conhecem sabem que não sou do tempo da Guerra – refiro-me à segunda, evidentemente).
No laboratório, que ficava na cave do edifício principal e era um sítio cheio de mistérios e tubos de ensaio retorcidos onde o ar era escuro e cheirava a pó, lembro-me de ter aprendido a classificar as folhas segundo o respectivo recorte. Nunca mais me esqueci, vá-se la lá saber porquê, das lanceoladas.
Havia festas nas datas do costume. Decorriam numa sala com palco e cortina a sério na casa do director (lateral às cavalariças por cujo portão largo nós entravámos para o colégio) e constavam sempre de uma demonstração de canto coral acompanhado ao piano por uma senhora saída directamente de um filme já na altura muito antigo (eu como era da terceira voz desafinada e não conseguia atinar com o canon ficava sempre na fila de trás, em silêncio religioso, recompensada depois com a recitação individual de uma poesia – e ainda hoje me lembro da Balada da Neve por causa disso…), e de uma peça de teatro que normalmente me corria mal – ou porque o anjinho entrava em cena com uma das asas abalroadas ou porque os remendos no rabo das calças do pobrezinho apareciam a servir de joelheiras. Os pais das crianças riam muito e eu engasgava-me nas deixas.
Nunca levei reguadas. Minto. Houve uma altura em que levava reguadas regularmente, mas era eu própria quem as aplicava. Explico. O Senhor Gomes, que tinha umas ideias avançadas para a época (mesmo que não acreditem...), pusera em prática um exercício de memória. Reproduzia no quadro um desenho com vários elementos, deixava que o observássemos durante alguns minutos, apagava-o e depois mandava-nos executá-lo de cor. A professora da quarta classe, que não a minha, era a encarregue de zelar pelos resultados. Perversa e autoritária (qualidades transversais aos mais variados tipos de pedagogo...), aplicava uma reguada a quem falhasse no teste. A mim faltava-me sempre qualquer coisa. Talvez por isso, a dada altura desistiu de me bater. Apontava-me a régua com a cabeça, eu dirigia-me à secretária dela e desferia com o vigor, que era nulo, o invariável castigo. Até que houve um dia em que o Senhor Gomes acabou com aquilo.
Há anos que não pensava nele. E não é pelo que estarão a pensar.