26/09/07

LIVROS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - excerto

J.D. Salinger, (começo de) Carpinteiros, Levantei Alto o Pau de Fileira e Seymour: Uma Introdução, Difel, 2006
Certa noite, há uns vinte anos, durante uma epidemia de papeira na nossa enorme família, a minha irmã mais nova, Fanny, foi levada, com berço e tudo, para o quarto ostensivamente livre de germes que eu partilhava com o meu irmão mais velho, Seymour. Eu tinha quinze anos, Seymour dezassete. Aí por volta das duas da manhã, fui acordado pelo choro da nova colega de quarto. Deixei-me ficar numa posição imóvel e neutra durante uns minutos, a ouvir o chinfrim, até que ouvi, ou senti, Seymour a mexer-se na cama ao lado da minha. Naquele tempo, tínhamos sempre uma lanterna na mesa-de-cabeceira entre as camas, para emergências que, tanto quanto me lembro, nunca ocorreram. Seymour acendeu-a e levantou-se. «A mãe disse que o biberão estava em cima do fogão», disse eu. «Já lho dei há bocado», disse Seymour. «Não é fome.» Dirigiu-se no escuro para a estante e passou a luz da lanterna pelas prateleiras de um lado para o outro. Sentei-me na cama. «Que estás a fazer?», disse eu. «Acho que lhe vou ler qualquer coisa», disse Seymour, pegando num livro. «Ela tem dez meses, caraças», disse eu. «Eu sei», disse Seymour. «Eles têm ouvidos. Podem ouvir.»
A história que Seymour leu a Fanny nessa noite, à luz da lanterna de bolso, era uma das suas favoritas, um conto taoísta. Ainda hoje, a Fanny jura que se lembra de Seymour lha ter lido:


O Duque Mu de Chin disse a Po Lo: «Estás agora com uma idade avançada. Há algum membro da tua família que eu possa mandar escolher cavalos em vez de ti?» Po Lo respondeu: «Um bom cavalo pode ser escolhido pela sua constituição e aparência geral. Mas o cavalo excepcional - que não levanta poeira e não deixa marcas - tem alguma coisa de evanescente e elusivo como o ar impalpável. Os talentos dos meus filhos estão muito abaixo disso; são capazes de reconhecer um bom cavalo quando o vêem, mas não um cavalo excepcional. Mas tenho um amigo, um certo Chiu-fang Kao, feirante de carvão e hortaliça, que, no que toca a cavalos, não me fica de modo nenhum atrás. Peço-te que o vás ver.»
O Duque Mu assim fez, e de seguida mandou Chiu-fang Kao em busca de um corcel. Daí a três meses, voltou com a notícia de que encontrara um. «Está agora em Shach'iu», acrescentou. «Como é o cavalo?», perguntou o Duque. «Ah, é uma égua de pêlo castanho-escuro», foi a resposta. Porém, quando alguém foi buscar o cavalo, viu-se que se tratava de um garanhão preto como o carvão! Muito desagradado, o Duque mandou chamar Lo Po. «Aquele teu amigo», disse ele, «que encarreguei de encontrar um cavalo, saiu-se com uma bela trapalhada. Vê lá que nem sequer sabe distinguir a cor ou o sexo do animal! Que raio sabe ele de cavalos?» Lo Po soltou um suspiro de satisfação. «Chegou realmente a tal ponto?», exclamou. «Ah, então vale dez mil como eu, todos juntos. Não há comparação entre nós. O que Kao tem em vista é o mecanismo espiritual. Ao assegurar-se do essencial, esquece os pormenores comuns; atento às qualidades interiores, não presta atenção às exteriores. Vê o que quer ver, e não o que não quer ver. Atenta nas coisas que quer observar, e descuida as que não exigem atenção. Um bom juiz de cavalos como Kao tem em si capacidades para julgar algo melhor do que cavalos.»
Quando o cavalo chegou, verificou-se que era realmente um animal excepcional.


Reproduzi aqui o conto não só porque invariavelmente sou capaz de tudo e mais alguma coisa para recomendar uma boa chupeta em prosa a pais ou irmãos mais velhos de bebés de dez meses, mas também por uma razão muito diferente. (...)

1 comentário:

Anónimo disse...

As iludências aparudem!