29/09/07

PARA O ARCEBISPO DE MAPUTO FRANCISCO CHIMOIO

Os europeus andam a matar os africanos vendendo-lhes preservativos com o vírus da SIDA, terá afirmado o arcebispo da capital moçambicana que depois disse que não tinha dito nada disso. É indiferente. A posição oficial da igreja é que os preservativos são uma invenção do diabo e que não há como a fidelidade, melhor ainda, a castidade, para evitar a doença. Quem quiser ficar a conhecer melhor a mensagem criminosa propagada pelo Vaticano, pode navegar a partir de aqui. Vómito garantido.

LIVROS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - excerto

Bill Bryson, Terra de Abundância, in Notas sobre um País Grande, Quetzal, 2006
Para um amigo que não é gordo mas é MUITO amigo das gordas
Ultimamente tenho pensado muito sobre comida: isto porque não tenho comido nada. É que a minha mulher pôs-me há pouco a fazer dieta, depois de sugerir (a meu ver, de forma pouco simpática) que eu estava a parecer-me com algo que o Richard Branson tentaria atirar ao ar.
É uma dieta interessante, que ela própria desenvolveu, e que essencialmente me permite comer qualquer coisa desde que não contenha gorduras, colesterol, sódio e não seja saborosa. Para que eu não passasse fome, foi ao supermercado e comprou tudo o que contivesse farelo. Não tenho a certeza, mas acho que ontem comi costoletas de farelo ao jantar. Estou muito deprimido.

A obesidade constitui um problema grave na América (bem, pelo menos para as pessoas gordas). Metade dos adultos americanos tem excesso de peso e mais de um terço é considerado obeso (isto quer dizer, gordo o suficiente para fazer-nos pensar duas vezes antes de entrarmos com ele num elevador).

Agora que quase ninguém fuma, a obesidade tomou conta do país como a maior preocupação em termos de saúde. Cerca de 300 000 americanos morrem todos os anos devido a doenças relacionadas com a obesidade, e o país gasta $100 milhões a tratar de doenças originadas pelo facto de se comer de modo excesivo - diabetes, problemas cardíacos, pressão arterial alta, cancro, e por aí fora (eu não me tinha apercebido, mas ter excesso de peso pode aumentar as nossas hipóteses de contrair cancro do cólon em cerca de 50 por cento, e esta é uma doença que realmente não queremos ter. Desde que li isso estou sempre a imaginar um proctologista a examinar-me e a dizer: «Uau, quantos cheeseburgers comeu ao longo da sua vida, Sr. Bryson?») Ter excesso de peso também reduz substancialmente as nossas hipóteses de sobreviver a uma cirurgia, já para não falar de ter encontros amorosos de jeito.

Acima de tudo, significa que pessoas que, em teoria, gostam de nós, nos chamam «Sr. Bucha» e nos perguntam «Que raio está a fazer?!», quando abrimos a porta do armário da cozinha e, de forma completamente acidental, tiramos um enorme pacote de Doritos.

O que é espantoso para mim é como é que alguém pode ser magro neste país. Fomos a um restaurante há umas noites quando eles estavam a promover algo chamado «Caçarola Sensação». Aqui está (e tudo isto é verdadeiro) a descrição do menu da Caçarola de Batata com Chilli e Queijos:
«Começamos esta incrível combinação com batatas onduladas, firmes e estaladiças. A cobri-las, temos generosas camadas de queijos Monterey jack e cheddar derretidos e, por cima deles, tomates, cebolinho e natas azedas».

Vêem o que eu enfrento? E esta era uma das opções mais modestas. Aquilo que é mais deprimente é que a minha mulher e os meus filhos conseguem comer estas coisas e não engordam nada. Quando a empregada chegou, a minha mulher disse:
- Eu e os meus filhos vamos querer a Mistela Suprema De Luxe na Caçarola, com um dose extra de queijo e natas e, à parte, um acompanhamento de cebolada com calda de chocolate quente e molho de bolacha.
- E para o Sr. Bucha, o que vai ser?
- Traga-lhe apenas alguns farelos secos e um copo de água.

Quando no dia seguinte, após um pequeno-almoço composto por flocos de aveia e sementes, expressei à minha mulher a opinião de que aquilo era, com todo o respeito, a dieta mais estúpida que eu já tinha visto, ela disse-me para eu encontrar uma melhor, e por isso decidi ir à biblioteca. Havia, pelo menos, 150 livros sobre dieta e nutrição - Dr. Berger's Immune Power Diet, Straight Talk About Weight Control, The Rotation Diet - mas eram todos demasiado sérios e obcecados por farelos para o meu gosto. Foi então que vi um que era precisamente do género que estava à procura, da autoria de Dale M. Atrens, Professor Doutor, intitulado Dont't Diet. Ora aqui estava um título que me podia servir.

Decidindo pôr temporiamente de parte a minha aversão habitual a consultar um livro de alguém snob ao ponto de colocar Professor Doutor antes do nome (afinal de contas, eu não ponho Professor Doutor antes do meu nome nos livros que escrevo - e não é só porque não o sou), levei-o para a área de leitura que as bibliotecas têm para pessoas que são estranhas e não têm outro sítio para ir durante a tarde mas que, apesar disso, não estão ainda completamente prontas para serem institucionalizadas, e dediquei-me a um estudo reflexivo durante uma hora.

A premissa do livro, se percebi bem (e desculpem-me se for um pouco vago em relação a alguns pormenores, mas distraí-me com o senhor sentado ao meu lado, que estava a ter uma conversa sossegada com alguém de outra dimensão), é que o corpo humano foi programado, ao longo de uma extensa evolução, a ganhar tecido adiposo para isolar o calor em períodos de frio, proporcionando um conforto almofadado e reservas de energia em tempo de vacas magras.

O corpo humano - obviamente, o meu em particular - é extremamente competente a fazer isso, coisa que os musaranhos não conseguem fazer. Têm de comer a toda a hora, «Deve ser por isso que os musaranhos produziram tão pouca arte ou música», garceja Atrens. Ah! Ah! Ah! Ah! Mas, pensando melhor, pode ser porque os musaranhos comem folhas, enquanto eu como um gelado de chocolate gigante.

A outra questão interessante que Atrens salienta é que a gordura é demasiado teimosa. Mesmo quando nos matamos a passar fome, o corpo mostra uma enorme relutância em renunciar às suas reservas de gordura.
Tenham em conta que cerca de 450 gramas de gordura representam 5000 calorias - aquilo que, em média, uma pessoa consome num total de dois dias. Isto significa que se passássemos fome durante uma semana - não comêssemos absolutamente nada - não perderíamos mais do que 3 1/2 de gordura e, sejamos realistas, isso não se nota nada quando vestimos o fato-de-banho.

Depois de nos torturarmos desta forma durante sete dias, acabamos por ir à dispensa enquanto ninguém olha e comemos tudo o que encontramos menos um saco de ervilhas, recuperando o peso que tínhamos perdido e algum extra - e aqui é que está o problema - agora o nosso corpo sabe que tentámos matá-lo à fome e que nós não somos de confiança e acumula um pouco mais de gordura no caso de nos lembrarmos de mais alguma ideia disparatada.
É por isto que fazer dieta é tão duro e frustante. Quanto mais tentamos ver-nos livres da nossa gordura, mais ferozmente o nosso corpo se agarra a ela.

Lembrei-me então de fazer uma dieta alternativa muito engenhosa. Eu chamo-lhe A Dieta de Enganar o Vosso Corpo 20 Horas Por Dia. A ideia é que durante 20 em cada 24 horas passemos impiedosamente fome, mas em quatro intervalos seleccionados durante o dia - para facilitar as coisas, chamemos-lhe pequeno-almoço, almoço, jantar e ceia - alimentemos o corpo com algo como um prato de salsichas, batata frita e feijão e uma tigela grande com um gelado de chocolate gigante, para que ele não se aperceba que o estamos a matar à fome. Genial, não é?

Não sei porque razão não me lembrei disto antes. Acho que são todos estes farelos que estão a afectar-me a cabeça, ou coisa assim.
IMAGEM: Fernando Botero, A Family, mais aqui

28/09/07

JEWISH KLEZMER vs GIPSY MUSIC


Do filme Train de Vie, para a Miriam. Hoje.

LIVROS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - excerto

Juan Rulfo, (começo de) É que Somos Muito Pobres, in A Planície em Chamas, Cavalo de Ferro, 2003
Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta e, no sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu pai isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água fria que caia do céu queimava aquela cevada cortada tão recentemente.

E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca, que o meu papá lhe ofereceu no dia do aniversário dela, tinha-a levado o rio.
O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.
Quando me levantei a manhã estava cheia de nuvens escuras e parecia que tinha continuado a chover sem parar. Notava-se que o barulho do rio era mais forte e ouvia-se mais perto. Cheirava-se, como se cheira uma queimada, o cheiro a podre da água revolta.
À hora em que fui espreitá-lo, o rio já tinha perdido as suas margens. (...)
A minha irmã e eu voltámos a ir à tarde ver aquele amontoadeiro de água que cada vez se faz mais espessa e escura e que já passa muito por cima de onde deve estar a ponte. Ali estivemos horas e horas sem nos cansarmos vendo aquela coisa. Depois subimos pelo barranco, porque queríamos ouvir bem o que diziam as pessoas, pois lá em baixo, junto ao rio, há uma grande barulheira e só se vêem as bocas de muitos que se abrem e fecham e parece que querem dizer algo; mas não se ouve nada. Por isso subimos pelo barranco, onde também há gente olhando o rio e contando os prejuízos que fez. Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu pai lha ofereceu no dia do aniversário dela e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos.
Não consigo perceber por que é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes me coube acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
(...)
O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda era ela uma vitelinha, para a dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores.
FOTOGRAFIA DE JUAN RULFO - mais aqui

27/09/07

EU HOJE SOU SANTANETE

Luís Pacheco, o único maldito encartado que nos resta, também gosta do homem. Em entrevista recente a Miriam Assor, chamou-lhe bon vivant e outras coisas simpáticas: «Não deixou obra nenhuma, mas sabe viver. Andava nas discotecas e estes gajos – o pequeno, o gajo que é quase anão – fez-lhe a folha. O Santana é um senhor. Gosta das noites. E bebe o seu copinho.»
Inegável é que para o assassínio político de Santana Lopes muito terá contribuido o conservadorismo nacional. O que não deixa de ter graça, porque o homem, além das boîtes, também é dado aos pastorinhos de Fátima. Em resumo, e contrariando o bispo Berkeley, a realidade tomba de onde menos se espera.
Foi o que aconteceu de novo, desta vez em directo na SIC. Incomodado com a interrupção da entrevista que dava ao canal privado - tudo porque acabava de chegar à Portela o tal treinador que não tem culpa de ser sexy - Santana levantou-se e concluiu que «o país está doido». Ele, que já foi dirigente de futebol, teve um repente e uma atitude. Não faltará quem venha agora dizer que se terá tratado de um gesto irreflectido ou de dramatismo encenado. Comigo não contem. Eu hoje sou santanete. Ao que uma pessoa chega... para não falar do país.

LIVROS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - excerto

J-M G. Le Clézio, (começo de) Índio Branco, Fenda, 1989
Não sei muito bem como é possível, mas a verdade é esta: sou um índio. Não o sabia antes de ter encontrado os Índios, no México e no Panamá. Sei-o agora. Não sou talvez um índio muito bom. Não sei cultivar o milho nem afeiçoar uma piroga. O peiote, o mescal ou a chicha mastigada sobre mim não exercem grande efeito. Mas quanto ao resto, quanto à maneira de andar, de falar, de amar ou de ter medo, posso dizer o seguinte: quando encontrei esses povos índios, eu, que não julgava por aí além ter família, senti-me como se de repente tivesse conhecido milhares de pais, de irmãos e de esposas. Como sempre, porém, quando uma pessoa pretende falar de um povo, quando se põe a adivinhar as paixões e os desígnios de uma comunidade que não é a sua, e mesmo que não creia forçosamente na ciência, corre sempre grandes riscos. Assim acontece com estas páginas, escritas para falar de gentes cuja grande virtude é a de serem inacessíveis e silenciosas, porque, desgraçadamente, estas páginas só sabem falar do seu autor.
Há, no entanto, outra coisa: na altura em que este livro termina apercebo-me de que seguiu, sem eu disso me dar conta, e como se fosse por acaso, o desenvolvimento do cerimonial mágico de cura: Taú Sa, Beka, Kakvahaí. Serão pois estas três etapas, que arrancam o homem índio à doença e à morte, precisamente as mesmas que balizam a vereda de toda a criação: Iniciação, Canto, Exorcismo? Há-de talvez saber-se um dia que não havia arte, mas tão-só medicina.

26/09/07

LIVROS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - excerto

J.D. Salinger, (começo de) Carpinteiros, Levantei Alto o Pau de Fileira e Seymour: Uma Introdução, Difel, 2006
Certa noite, há uns vinte anos, durante uma epidemia de papeira na nossa enorme família, a minha irmã mais nova, Fanny, foi levada, com berço e tudo, para o quarto ostensivamente livre de germes que eu partilhava com o meu irmão mais velho, Seymour. Eu tinha quinze anos, Seymour dezassete. Aí por volta das duas da manhã, fui acordado pelo choro da nova colega de quarto. Deixei-me ficar numa posição imóvel e neutra durante uns minutos, a ouvir o chinfrim, até que ouvi, ou senti, Seymour a mexer-se na cama ao lado da minha. Naquele tempo, tínhamos sempre uma lanterna na mesa-de-cabeceira entre as camas, para emergências que, tanto quanto me lembro, nunca ocorreram. Seymour acendeu-a e levantou-se. «A mãe disse que o biberão estava em cima do fogão», disse eu. «Já lho dei há bocado», disse Seymour. «Não é fome.» Dirigiu-se no escuro para a estante e passou a luz da lanterna pelas prateleiras de um lado para o outro. Sentei-me na cama. «Que estás a fazer?», disse eu. «Acho que lhe vou ler qualquer coisa», disse Seymour, pegando num livro. «Ela tem dez meses, caraças», disse eu. «Eu sei», disse Seymour. «Eles têm ouvidos. Podem ouvir.»
A história que Seymour leu a Fanny nessa noite, à luz da lanterna de bolso, era uma das suas favoritas, um conto taoísta. Ainda hoje, a Fanny jura que se lembra de Seymour lha ter lido:


O Duque Mu de Chin disse a Po Lo: «Estás agora com uma idade avançada. Há algum membro da tua família que eu possa mandar escolher cavalos em vez de ti?» Po Lo respondeu: «Um bom cavalo pode ser escolhido pela sua constituição e aparência geral. Mas o cavalo excepcional - que não levanta poeira e não deixa marcas - tem alguma coisa de evanescente e elusivo como o ar impalpável. Os talentos dos meus filhos estão muito abaixo disso; são capazes de reconhecer um bom cavalo quando o vêem, mas não um cavalo excepcional. Mas tenho um amigo, um certo Chiu-fang Kao, feirante de carvão e hortaliça, que, no que toca a cavalos, não me fica de modo nenhum atrás. Peço-te que o vás ver.»
O Duque Mu assim fez, e de seguida mandou Chiu-fang Kao em busca de um corcel. Daí a três meses, voltou com a notícia de que encontrara um. «Está agora em Shach'iu», acrescentou. «Como é o cavalo?», perguntou o Duque. «Ah, é uma égua de pêlo castanho-escuro», foi a resposta. Porém, quando alguém foi buscar o cavalo, viu-se que se tratava de um garanhão preto como o carvão! Muito desagradado, o Duque mandou chamar Lo Po. «Aquele teu amigo», disse ele, «que encarreguei de encontrar um cavalo, saiu-se com uma bela trapalhada. Vê lá que nem sequer sabe distinguir a cor ou o sexo do animal! Que raio sabe ele de cavalos?» Lo Po soltou um suspiro de satisfação. «Chegou realmente a tal ponto?», exclamou. «Ah, então vale dez mil como eu, todos juntos. Não há comparação entre nós. O que Kao tem em vista é o mecanismo espiritual. Ao assegurar-se do essencial, esquece os pormenores comuns; atento às qualidades interiores, não presta atenção às exteriores. Vê o que quer ver, e não o que não quer ver. Atenta nas coisas que quer observar, e descuida as que não exigem atenção. Um bom juiz de cavalos como Kao tem em si capacidades para julgar algo melhor do que cavalos.»
Quando o cavalo chegou, verificou-se que era realmente um animal excepcional.


Reproduzi aqui o conto não só porque invariavelmente sou capaz de tudo e mais alguma coisa para recomendar uma boa chupeta em prosa a pais ou irmãos mais velhos de bebés de dez meses, mas também por uma razão muito diferente. (...)

25/09/07

RELATIVISMO ECUMÉNICO

«Primeiro os budistas falaram das vias para a serenidade, da subjugação do desejo, do caminho da luz, e os seus colegas do painel disseram todos: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso, porreiro". Então o hindu falou dos ciclos de sofrimento, nascimento e renascimento, dos ensinamentos de Krishna e da via para a libertação, e todos disseram: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso, porreiro". E assim sucessivamente, até que chegou a vez do sacerdote católico falar da mensagem de Jesus Cristo, da promessa de salvação e do caminho para a vida eterna. Nessa altura, todos disseram: 'Eh pá, fixe, se te dás bem com isso, porreiro". Mas ele deu um murro na mesa e gritou: "Não! Não é uma questão de eu me dar bem com isso! É a verdadeira palavra de Deus, e se não acreditam vão todos direitos para o Inferno!" E todos disseram: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso, porreiro"», Simon Blackburn

21/09/07

PORQUE É QUE ELES ESCREVEM - J.M.-G. LE CLÉZIO

Je vais vous dire, je vais tout vous expliquer. Donc, j'avais dix-douze ans, j'habitais cette vieille maison sur le port, un peu napolitaine, complètement décrépie avec des draps que séchaient à toutes les fenêtres de la cour, les chats à demi-sauvages qui se battaient sur les terasses, et bien sûr les escadrilles de pigeons. En ce temps là je ne savais pas ce que c'était qu'un ecrivain, je n'en avais pas la moindre idée, je ne me doutais pas qu'il y avait eu un ecrivain nommé Jean Lorrain qui avait habité dans la même maison, autrefois. Je me souviens de cette maison surtout à la belle saison, en été et au commencement du printemps, parce qu'on laissait les fenêtres ouvertes et qu'on entendait le bruit des martinets et les roucoulements des pigeons. Mais il y avait un bruit spécialement qui me faisait quelque chose. Je ne peux pas vraiment dire pourquoi ça m'inquiétait, mais aujourd'hui encore quand j'y pense ça me fait frissonner et ça me met dans cet état de sorte de mélancolie et d'impatience qui précéde le moment où je sais que je vais devoir m'asseoir n'importe où, lá où je suis, prendre un cahier et un crayon à bille et commencer à écrire. Ce bruit, c'était les voix des jeunes gens qui s'appelaient dans la cour, qui criaient leurs noms. Il y avait des garçons qui venaient siffler, et d'autres mettaient la tête à la fenêtre, et ils disaient: «Tu cales?» Et ceux d'en haut: «Où vous allez?» Ils allaient je ne sais plus où, à la plage, ou à la foire, ou simplement au coin de la rue pour discuter, ou attendre les filles qui sortaient de l'école Ségurane, ça n'a plus aucune importance. Mais quand j'entendais ces sifflements, et les noms qui réssonnaient dans la cour, j'imaginais une autre vie que la mienne, j'imaginais les courses dans l'infinie des rues, j'imaginais les bains dans l'eau de mer froide, le soleil, l'odeur des cheveux des filles, la musique des dancings, l'aventure, la nuit. Jamais je n'ai entendu appeller mon nom dans la cour, jamais je n'ai entendu siffler pour moi. J'etait dans la même maison, mais c'etait un autre monde. Voilà, c'est pour cela que j'écris.

AN ISLAND OF ONE'S OWN

20/09/07

PORQUE HÁ COISAS QUE ME IRRITAM. E ANDAM POR AÍ A DISTRIBUIR O FILME «A QUEDA» À BORLA

Não fora os acontecimentos narrados em A Queda terem ocorrido há pouco mais de 60 anos, poderíamos pensar neles como num engenhoso enredo, e isto apesar da pobreza dos diálogos. O problema é que aconteceram mesmo há seis décadas, levaram ao extermínio de cerca de 6 milhões de judeus e 500 mil ciganos - apenas por o serem -, e subtraíram ao mundo 50 milhões de vidas.
Grande parte dos comentários ao filme sublinhou algo aparentemente simples: pela primeira vez fora mostrado o lado humano do Führer.
Confesso que senti alguma dificuldade em compreender o que queriam dizer. Porque a não ser que partilhemos do tipo de ignorância confessada por Woody Allen - «Juro que não sabia que Hitler era nazi. Durante muito tempo pensei que ele trabalhava para a companhia dos telefones» -, dificilmente encontraremos alguém que, por muito esotérico, acredite num Hitler vindo de Marte. Conhecem-se-lhe os progenitores e não consta que a mãe tenha recebido a visita de qualquer extraterrestre alado. Sabe-se onde nasceu, quando nasceu, onde andou à escola, quanto media, e até o momento em que deixou crescer o bigode.
Declarações do realizador Hirschbiegel reforçaram as minhas dúvidas: «Tem havido vozes preocupadas por termos representado Adolf Hitler como ser humano. Mas é ridículo olhar para os nazis como enviados do diabo. O mal está presente em todos nós». Não podia estar mais de acordo. Embora também não deixe de ser verdade que alguns de nós são bastante mais mauzinhos do que outros.
Assisti à fita no Goethe Institut de Lisboa com dezenas de pessoas de todas as idades, que não arredaram pé apesar das cadeiras improvisadas e dos intervalos para rebobinar a película. No fim prolongou-se o silêncio e, pelo menos em alguns, notou-se desconforto. Bruno Ganz fora brilhante.
À parte o consenso sobre a prestação do actor suíço, houve polémica. Em Israel discutiu-se a exibição comercial do filme, em respeito pelos 280 mil sobreviventes a viver no país. Wim Wenders, notando que a morte de personagens anónimas enche regularmente a tela, questionou o pudor do seu colega em mostrar a morte do ditador e de Goebbels; na sua opinião, ao desviar o olhar da câmara dos momentos finais dos dois assassinos, Hirschbiegel contribuia para a sua mitificação. Nas palavras sarcásticas do realizador de Ao Correr do Tempo, «pelo menos em Resident Evil (um filme gore de 2002) sabemos quem são os maus».
Na mesma linha, o «New York Times» notava que «ao lado de Goebbels e de Hitler, muito dos outros nem parecem tão maus como isso». O jornal suíço «Neue Zürcher Zeitung» afirmava que combater a diabolização de Hitler era uma coisa boa, «mas obviamente muito pouco quando se abdica ao mesmo tempo de qualquer análise política». Mas talvez a abordagem mais interessante que li tenha sido a de David Denby na «New Yorker».
Num texto chamado «Back in the Bunker», Denby pergunta: «Considerado como biografia, o resultado (...) d'A Queda é mostrar que o monstro não era sempre um monstro - simpático com a cozinheira e com as jovens secretárias, gostava do seu pastor-alemão Blondi e estava rodeado por subordinados fiéis. Chegamos à questão: Hitler não era um ser sobrenatural; era um homem comum que alcançou o poder pela vontade dos seus apoiantes. Mas é isto uma resposta suficiente para o que Hitler realmente fez?»
Não. Com certeza. Nem terá Hirschbiegel querido chegar a tanto. Mas então o que pretendeu? Que Hitler tinha um cão do qual gostava muito, era educado com as mulheres, comia ravioli e acabou vegetariano, já se sabia.
Imaginemos agora um espectador que ignore em absoluto a História. Não poderia ele legitimamente resumir o que se passa na tela à tragédia de um homem abandonado pelos seus correligionários, chefe militar implacável que manda abater os traidores e premeia a coragem (a cena de condecoração dos jovens é patética, mas é-o apenas porque nós sabemos que - na realidade - aquelas crianças são marionetas de um mundo grotesco), porventura um velho demente, a espaços muito desagradável embora quase digno de dó (não se mata ele no final)? Não poderia esse espectador chegar a ver nobreza nos suicídios perpetrados por vários dos seus apoiantes?
Há, claro, a cena terrível em que os seis amorosos e louríssimos filhos de Goebbels são mortos pela mãe (com maldade, Benby comenta que «é como se os pequenos Von Trapp tivessem sido silenciados de vez»). Ainda aí, não poderá o espectador desconhecedor do verdadeiro enredo ser levado a desculpabilizar Hitler face à enormidade do gesto de Magda Goebbels? Hitler manda fuzilar o cunhado de Eva Braun apesar dos pedidos dela, mas porque ele é um traidor; mata Blondi, mas Blondi é apenas um cão; por muito que gostemos de cães nada se pode comparar à crueldade da Medeia. É verdade que Hitler lhe corrobora o crime: o crime não deixa por isso de ser dela.
Serão as palavras de Traudl Junge (retiradas do documentário Im toten Winkel - Hitlers Sekretärin, no qual a ex-secretária relata e reflecte sobre os seus anos passados ao lado de Hitler) e a referência ao número de mortos resultantes dos 12 anos de nazismo que se exibem no final de A Queda suficientes para enquadrar a barbárie nacional-socialista? Após assistirmos durante duas horas e meia a uma história contada sob o ponto de vista de Junge (representada por Alexandra Maria Lara), inocente, fascinada e apiedada pelo Führer, parece muito pouco.
Hirschbiegel disse que «não oferece nenhuma explicação. Cada um dos espectadores deve encontrá-la por si». Mas uma explicação para quê? Com certeza não para o nazismo enquanto fenómeno social (para isso reveja-se o magistral Os Malditos, de Luchino Visconti). Com certeza não para o homem que o incarnou (melhor o faria uma obra que lhe retratasse os primórdios). Para o fascínio que exercia? Para o facto de os alemães o terem seguido cegamente? E chegamos ao nó do problema.
Filme germânico feito para germânicos, não tenderá ele a absolver, através do olhar de Traudl Junge, a própria nação alemã (note-se a perplexidade de Junge quando ouve Hitler culpar os judeus pelos males do mundo)? A insistência com que se sublinha o desprezo a que o ditador vota o seu povo leva-nos a suspeitar de que A Queda, muito mais do que sobre o famigerado lado humano de Hitler, é uma obra que tenta acrescentar, à vasta lista das vítimas do nacional-socialismo, o nome dos próprios alemães. Tê-lo-ão sido igualmente (não com certeza a dedicada secretária); convém recordar que há distinções a manter.
O incómodo que este filme provaca não resulta de assistirmos a cenas de simpatia protagonizadas por Hitler. O incómodo gera-se na sua perspectiva simplista, na ausência de análise, na falta de ideias. O incómodo aumenta com a suspeita de manipulação que nos invade. E o incómodo explode quando damos por nós à beira de um sentimentalismo light.
Sinal do empobrecimento intelectual dos tempos que correm, A Queda é um filme banal e bem executado que, sob a capa do realismo («foi assim que as coisas se passaram»), nada tem a acrescentar (a não ser as excelentes interpretações dos actores). Hitler, esse continuará a assombrar-nos.
Perante a infinita crueldade que originou e deu provas, permitam-me a pergunta: que raio nos pode interessar que ele gostasse de Blondi ou fosse vegetariano?

18/09/07

O Jogging Leva-nos Longe. Às Vezes

A viagem foi relâmpago; quanto à velocidade a que correu Sócrates, não sabemos. Da agenda, o reforço sempre anunciado das relações entre a Europa e os EUA, seguido do usual carpido sobre a situação na Palestina, Afeganistão e Iraque. Enfim, a cefaleia do costume chamada Médio Oriente. Ah, e a questão do Kosovo.
E se nada de novo nos chegava do reino da Dinamarca, também nada de novo nos chega agora do Estado de Washington DC. Sócrates disse o que era de se esperar que dissesse e falou em inglês (não apenas técnico, supõe-se). Que Bush é amigo; que seria bem-vindo.
De tudo, o mais notado foi o elogio do chefe da Casa Branca à forma física do nosso Primeiro: «um exemplo para o mundo».
Run por run, desentubei isto:

E ainda descobri isto:

que, por acaso, fiquei a saber ter ganho o Grande Prémio da Cidade do Fundão 2006, do Festival IMAGO.
Confesso, porém, que a primeira coisa que me veio à cabeça foi o fabuloso livro Rabbit, Run de John Updike (um dos grandes romancistas norte-americanos vivos), recentemente reeditado em Portugal.
Embora, claro, ter nascido para correr não seja definitivamente para todos. Como se prova:
Contas feitas, e antes que me lembre de mais alguma coisa, não sei se hei-de agradecer a Bush ou ao nosso Sócrates.
PS - Por falar em agradecimentos, já me esquecia: segundo o site Iraq Body Count, aqui, o número de mortos no Iraque oscilava hoje, às 17h15m, entre os 72 596 e os 79 187. Run baby run.

17/09/07

COISAS QUE NOS RECONCILIAM COM O MUNDO - Enquanto Bruxelas não as proibir


Bernstein conducting Mahler's 2nd (ending). Antes, depois ou durante leia aqui o que os burocratas de Bruxelas andam a magicar. E aumente o som das colunas.

FALAR CLARO, EMBORA COM 5 ANOS DE ATRASO

«I am saddened that it is politically inconvenient to acknowledge what everyone knows: the Iraq war is largely about oil», afirmou Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal norte-americana até Janeiro do ano passado e autor do livro The Age of Turbulence: Adventures in a New World acabadinho de sair. Dado que o homem não é - definitivamente - suspeito de perfilhar as vetustas teorias marxistas sobre a relação entre as infra e as superstruturas sociais, talvez os papistas João Carlos Espada ou José Manuel Fernandes não se recusem a lê-lo. Se aprenderão alguma coisa, é outra conversa.

16/09/07

A BOOK A DAY KEEPS THE DOCTOR AWAY VI - Principalmente quando se chega de uma ilha mesmo pequenina

«There was a man who loved islands. He was born on one, but it didn’t suit him, as there were too many other people on it, besides himself. He wanted an island all of his own: not necessarily to be alone on it, but to make it a world of his own.
An island, if it is big enough, is no better than a continent. It has to be really quite small, before it feels like an island; and this story will show how tiny it has to be, before you can presume to fill it with your own personality.» in The Man who loved islands, de D. H. Lawrence
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DE REGRESSO (COM TODA A SINCERIDADE, INFELIZMENTE)


Sviatoslav Richter toca Jeux d'eau de Ravel.

01/09/07

INTERREGNO

Aos meus eventuais visitantes, e em particular ao J.L. (que há muitos anos me conhece pelo meu nome):
Durante os próximos 15 dias estarei algures em parte incerta, posta em sossego. Infelizmente (e não é nada contra vós) voltarei. A Pastelaria reabrirá proximamente.
Atentamente,
Leopardo