23/07/07

O Sorriso da Hiena (A Ilha)

A brisa rasa o cais pregueando as águas. Ancorados a cada um dos lados do pontão dormitam barcos embalados pela maré, gemendo ora uns, ora outros.
A mulher caminha sobre o paredão perpendicular à ria, um saco apertado contra o peito, detendo-se-lhe o olhar no que lhe parece ser o caos absoluto dos barcos — redes, remos, bóias, bidões, aparelhos, canas, cordas, velas enroladas, cadáveres de motores —, atenta à chiadeira de uma bicicleta que passa. Acena com a cabeça ao pescador que lhe antecipa o gesto, parada, à espera, como se pudessem o homem e a sua bicicleta eclipsar-se no ar, vendo-o afastar-se na direcção da primeira e única curva que a vista alcança, a estrada perdendo-se no horizonte. A mulher retoma o passo e lê chegada ao pára-vento: «Os barcos de carreira estão temporariamente suspensos».
Descansa no pontão, escutando o pulsar da ria nas escadas que descem do cais, atapetadas de algas e enxames de lapas expostos pela maré baixa. Derrama-se uma luz frouxa sobre a tarde e rolos de espuma desfazem-se contra as paredes do molhe. Um bando de gaivotas sobrevoa uma traineira. Persegue a fantasia das aves que planam já ao largo e nesse movimento se precipita a si própria, deixando para trás as casas, o traçado das ruas, as árvores do jardim, o bulício do cais, até a fachada da vila — onde, em primeiro plano, uma mulher sentada aperta um saco contra o peito — se esbater em nada.

— A cabeça de um homem é tão obscura como o equilíbrio de um gato.
Teria sido ele a dizer isto? Sim, mas só depois, muito depois.

A mulher sabe — como um bicho sabe da floresta a crepitar em chamas — que invocar a memória é pressagiar a morte. E então? Como renegar o sal das amoras, as casas caladas, a névoa que os alheia das sobras do mundo? Como esquecer o rosto tolhido pela doença, os olhos encovados, o corpo à mercê de uma desconhecida inventada numa manhã de Outono?
Olha o sol prestes a desaparecer e de súbito o adivinha, confirmando-o num movimento lento de cabeça, posto atrás dela exorcizada a febre. Num murmúrio, ouve-o perguntar-lhe na sua língua estrangeira: «Je peux vous embrasser?», e os braços dele rodeiam-lhe a cintura, o peito junto às costas dela, a cabeça pousada sobre a curva do seu ombro, e só então o sol se transfigura em lume, cobrindo-se o céu, eles, a Ilha — o mundo, seria? — de uma calma inteira que a mulher revive na cadência da maré pulsando nas escadas que descem do pontão para o mar. Uma benção.
Faz-se ouvir a cantilena do comboio que atravessa a vila. A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e já essa outra história se esvaía em fumo como uma cabeleira moura desmanchada ao vento.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, insiste o comboio enquanto se afasta.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e as traineiras-luzes-de-uma-vila-acesa se não soubéssemos, a Sul, só o mar.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e o maior equívoco que seria o da abnegação que espera recompensa.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e a nossa impotência em coincidir com o tempo das coisas desejadas.

— Sinto a tua falta, mesmo se contigo estou tão sozinho como sem ti — disse-lhe também o homem.
E, mesmo à porta, sentencioso:
— Todas as coisas são irreversíveis embora nada seja inevitável. A morte, apenas. Eis a regra do jogo.
— Cala-te! — pede-lhe a mulher sentada no cais tentando escutar as vozes.
E as vozes insistem: «Uma benção!»
«Uma benção!», insistem os barcos. «Uma benção!», segredam as árvores do jardim. «Uma benção!», repetem as casas de cal. «Uma benção!», regozijam-se os mortos nas campas. «Uma benção!», murmuram as gentes pelas ruas. «Uma benção!», sibilam as águas. UMA BENÇÃO!, grita o pescador na sua bicicleta antes de desaparecer atrás de uma nuvem em direcção ao Sul.
Edward Hopper, Rooms by the Sea

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