29/07/07

O mundo anda confuso, e eu também

Se não, leia-se a seguinte declaração publicada no DN, a 22/o7/2007 (ok, não será completamente fresca, mas também com o calor que está...):
«Não é necessário liberalizar mais os despedimentos. Se fosse difícil despedir não tínhamos quase 500 mil desempregados». Quem disse? Quem disse?
1. Francisco Louçã
2. José Sócrates
3. Álvaro Cunhal, num sessão de mesa de pé de galo organizada pelos inimigos de Zita
4. Manuel Carvalho da Silva, da CGTP
5. Outro
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28/07/07

27/07/07

Ainda em love's mood

Let's Get Lost With Chet Baker

60' mood

Van Morrison - «Gloria», com o nosso pedido de desculpas pela desbunda não ir até ao fim

O Bispo de Aveiro vai a banhos


Já não bastavam os bebés gritando contra o calor, os cães saracoteando-se, os putos a levar estaladas, a tortura do voley e das raquetes, os adeptos do jogging, os fanáticos do surf, os maluquinhos das motas (de água, naturalmente), os apitos dos salvadores e o trance aos altos berros, agora ainda temos um bispo a pregar pelos areais. Não estará lá pelo prazer, que nem o imagino em calções. Como já foi explicado, vai no cumprimento do dever, porque «a Igreja não tem férias». Mas, a não ser que o senhor bispo seja capaz de repetir o milagre do Mar Vermelho e abrir duas muralhas na água, vaticino-lhe muito pouco sucesso na angariação de adeptos. Além de que, perante os corpos desnudados, corre sério risco de cair em tentação. Mesmo que só em pensamento. O que, o senhor bispo sabê-lo-á melhor que eu, também não é muito bem visto lá em cima. ACRESCENTO: Diz o Manuel das Coisas do Arco da Velha que isto é uma versão literal do Sermão de Santo António aos Peixes. Como é que eu não pensei nisso?

Pensamento reconfortante antes de ir para a cama

«La pensée d'un homme est avant tout sa nostalgie», Albert Camus
Retrato de Henri cartier-Bresson

24/07/07

Música ao final de tarde

Glenn Gould plays Bach

Mas as crianças, senhor...


O primeiro-ministro José Sócrates, acompanhado da ministra da educação, Maria de Lurdes Domingues, fez a apresentação pública do novo Plano Tecnológico da Educação que, espera-se, ponha os alunos portugueses, entre outras coisas, a aprender a tabuada. Durante a cerimónia, o engenheiro e a digna acompanhante foram surpreendidos pelo facto das crianças presentes terem sido pagas, 30 euros cada, para participarem no evento. Das duas uma: ou houve erro de casting, ou estamos perante um inaceitável exemplo de exploração infantil! Para mais, durante as férias das pobrezinhas...
Imagem: ilustração de Quentin Blake para Roald Dahl

«Life of Brian», Monty Python: Always Look on the Bright of Life

Boa noite!

23/07/07

Sigmund Freud: porque há coisas que me irritam

«Freud modificou, talvez de forma irreversível, a imagem que o homem tem de si mesmo. Comparado com isto, é de importância secundária que algumas das suas ideias válidas não tenham sido novas, que as suas concepções específicas sejam questionáveis e que os seus métodos terapêuticos sejam duvidosos» (L. L. Whyte, cit. por Frank Cioffi, «A Controvérsia Freudiana: O Que Está em Questão?», in Freud, Conflito e Cultura, 2000, Zahar).
Se se tiver esta afirmação por justa, então, só nos restará concluir que tudo vai bem no melhor dos mundos: as insuficiências da psicanálise, a existirem, não abalam o essencial da teoria nem a sua importância como facto cultural. A tese de L. L. Whyte é, contudo, muito menos inócua do que parece. Primeiro, porque atribuir «importância secundária» aos senãos da psicanálise é, naturalmente, uma asserção polémica; depois, porque garantir que «Freud (…) modificou a imagem que o homem tem de si mesmo», se para uns resta provar, para outros não passa de uma ideia feita. Acresce, como nota Frank Cioffi no artigo citado, que a referida modificação será sempre «de pouca serventia, se essa nova imagem não corresponder melhor a uma realidade que tenha existência independente».
Ora, se há coisa que merece o acordo da maioria dos críticos é que, apesar da sua pretensão a cientista, a realidade nunca foi obstáculo para Freud. Neste ponto, acompanham-no alguns ilustres. Jean-Jacques Rousseau, o «bom selvagem», arriscava com desenvoltura na introdução ao seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: «Comecemos pois, por pôr de lado todos os factos, visto nada terem a ver com a questão».
Ao contrário do que a vulgata psicanalítica pretende fazer crer, a contestação a Freud não assentou, essencialmente, no anti-semitismo ou no horror vitoriano ao sexo. Desde o início, foram muitos os que se ergueram contra as suas teorias, uns por razões científicas, outros invocando somente essa categoria tão desprezada por filósofos, mas que, se levada a sério, teria com certeza contribuído para evitar muitos desvarios históricos — o bom senso.
E terá sido exactamente o bom senso a mover um psicólogo contemporâneo de Freud, quando lhe fez notar o que considerava uma excessiva sexualização do mundo onírico. Dando como exemplo o seu próprio sonho recorrente — subir escadas —, onde não vislumbrava nada de sexual, o incauto crítico não ficaria sem resposta. Em 1911 tem a honra de se ver incluído numa nota à nova edição de A Interpretação dos Sonhos: «Ficámos alerta com esta objecção e começámos a concentrar a nossa atenção no aparecimento de degraus, escadas e escadas de mão nos sonhos, e estávamos em breve em condições de mostrar que escadas (e coisas análogas) eram indiscutivelmente símbolos de copulação. É difícil não ver (…): nós chegamos ao cimo numa série de movimentos rítmicos e com crescente falta de ar e depois, com alguns saltos rápidos, podemos voltar a baixo. Deste modo, o padrão rítmico da copulação é reproduzido no acto de subir escadas».
Quanto ao filósofo vienense Heinrich Gomperz não apresentara nenhuma crítica. Pelo contrário. Impressionado com a teoria freudiana dos sonhos enquanto realizações disfarçadas de desejo, oferecera-se a Sigmund como cobaia. Ao fim de alguns meses, os resultados não podiam ser piores: «A experiência revelou-se um completo fracasso. Todas as coisas "terríveis" que ele sugeria que eu poderia ter escondido de mim próprio e "reprimido", eu podia assegurar-lhe com honestidade que tinham estado sempre nítida e conscientemente presentes na minha mente».
Dada a relutância de Freud em consentir ser posto em causa, facto que a maioria dos biógrafos considera um traço fundamental do seu carácter, percebe-se que o irreverente Karl Kraus (1874-1936), também ele judeu, tenha optado não pela argumentação mas pela ironia telegráfica: «A teoria antiga negava a sexualidade dos adultos. A moderna diz que os bebés têm prazer sexual enquanto defecam. A antiga era melhor, ao menos podia ser contraditada pelas partes envolvidas» (Thomas Szasz, Anti-Freud, Karl Kraus's Criticism of Psychoanalysis and Psychiatry, 1990, Syracuse University Press). Ou como, também de forma concisa, explicou o filósofo francês Gilles Deleuze: «O mecanismo de interpretação da psicanálise pode ser resumido ao seguinte: o que quer que se diga quer sempre dizer outra coisa».
Na actualidade, entre os opositores mais firmes encontra-se Frederick C. Crews (ex-psicanalista, professor e crítico de literatura inglesa entretanto jubilado da Universidade da Califórnia, Berkeley), que não hesitou em chamar «charlatão» a Freud, acrescentando que «se um homem de ciência se comportasse hoje daquela maneira seria obviamente despedido, as bolsas de investigação ser-lhe-iam cortadas e viveria no opróbrio até ao final dos seus dias» (Conversation with Frederick Crews, disponível on-line). No livro que organizou, Unauthorized Freud: Doubters Confront a Legend (1998, Viking), onde se compilam artigos de uma vintena de autores, Crews resume sem peias o objectivo da obra: mostrar como a psicanálise começou por ser um erro para crescer até se tornar numa impostura.
Idêntica convicção terá estado na origem da revolta de numerosos intelectuais norte-americanos contra o carácter apologético da exposição dedicada a Freud, proposta pelo curador da Biblioteca do Congresso, Michael S. Roth, em Junho de 1995, e que deveria ser organizada pela IPA (International Psichoanalytical Association) e pelos Sigmund Freud Archives. Conseguindo fazer-se ouvir, os contestatários impuseram que as opiniões críticas também fossem incluídas na exposição, a qual acabaria por só abrir ao público no Outono de 1998, após ter chegado a ser cancelada.
Mais recentemente, a França também se incendiou a propósito dos 150 anos do nascimento do pai da psicanálise. A pátria de Jacques Lacan (guru parisiense que, em Março de 1996, seria lapidado pelo professor Raymond Tallis na conceituada revista médica inglesa The Lancet: «Poucos psicanalistas são tão claramente psicopatas como Lacan, o mais eminente discípulo francês de Freud») assistiu a uma guerra aberta, declarada nos media pela edição de Le Livre noir de la psychanalyse (2005, Éditions des Arènes, org. Catherine Meyer), a que se seguiu L'Anti-livre noir de la psychanalyse (2006, org. Jacques-Alain Miller, Éditions du Seuil).
Mas a crítica moderna a Freud não é de agora. Recua pelo menos à década de 70, quando destrona para sempre a biografia oficial do pai do complexo de Édipo assinada por Ernest Jones, Sigmund Freud: Life and Work, obra em três volumes publicada em 1953-57. As palavras de Jacques Bénesteau, inscritas em Mensonges Freudiens: Histoire d'une désinformation séculaire (2002, Mardaga), dão conta da apreciação generalizada dessa biografia original: «A formidável biografia de Jones é, com certeza, um delicado e muito britânico "understatement", uma suavização diplomática das verdades, mas também uma refinada alteração dos factos históricos e propaganda ideológica sob estreita vigilância dos censores», referindo-se Bénesteau ao facto de a própria Anna Freud ter supervisionado em pormenor o trabalho do discípulo inglês do pai.
Três décadas antes de Mensonges Freudiens vir a público, já Henri Ellenberger chamava a atenção para os efeitos nefastos do endeusamento de Freud e dos primórdios da psicanálise. Em Discovery of the Unconscious: the History and Evolution of Dynamic Psychiatry (1970, Basic Books), afirmava que «a psicanálise tem crescido numa atmosfera de lenda, e por isso não é possível uma apreciação objectiva antes de os verdadeiros factos históricos serem apurados (…)». Na opinião de Ellenberger, Freud era vendido ao público como «um herói solitário a lutar contra uma hoste de inimigos, sofrendo o ataque de "fundas e flechas da fortuna adversa", mas triunfando no fim». Este perfil redentor ocultava a «maior parte do contexto científico e cultural em que a psicanálise se desenvolveu», atribuindo «a Freud muito do que pertence a Herbart, Fechner, Meynert, Benedikt e Janeta», ignorando «a obra de exploradores anteriores do inconsciente, dos sonhos e da patologia sexual» (cit. por Richard Webster, Freud Estava Errado: Porquê?, 2002, Campo das Letras).
Entretanto, o edifício psicanalítico fora perigosamente minado em 1969 quando Paul Roazen, falecido no ano passado, escreveu Brother Animal: the Story of Freud and Tausk, uma leitura da relação entre o psicanalisado Victor Tausk e o movimento vienense que acaba tragicamente com o suicídio daquele em 1919, aos 38 anos. Além deste episódio, que os adeptos de Freud sempre tentaram branquear (em 1988, o freudiano K. R. Eissler publica O Suicídio de Victor Tausk, tentando pôr termo ao desagradável assunto), a obra abordava também, pela primeira vez, a análise de Anna Freud no divã do pai, o que daria origem a uma acesa desconfiança desta em relação a biógrafos e investigadores e, além disso, à sua decisão de embargar o acesso a certos documentos conservados na Biblioteca do Congresso até ao século XXII!
Roazen volta à carga em 1975 com Freud and his Followers, no que é seguido por Frank Sulloway com Freud, Biologist of the Mind: Beyond the Psychoanalytic Legend, publicado quatro anos depois. Embora nenhum deles fosse um crítico radical — Sulloway, que entretanto endureceu a sua posição, terminava o seu livro afirmando que, «no fim de contas, Freud era mesmo um herói» —, a reacção às duas obras foi bastante azeda, e ambos os autores se viram, recentemente, rotulados de historiadores «revisionistas» num dicionário de psicanálise francês.
Entre um dos mais indignados da altura contava-se Peter Gay, o psicanalista autor de Freud: a Life of our Time (1988), biografia que se pretende de referência e se apresenta como «desapaixonada e de cariz académico», mas que o cordato Webster não deixou de acusar ser «uma versão sofisticada e actualizada da biografia oficial de Jones, cuja atracção para os devotos da psicanálise é parecer um toque de clarim de fé e certeza no meio da dúvida, capaz de admitir a existência de muitas objecções à psicanálise sem sacrificar a obediência ao seu fundador ou renunciar à imagem dele como génio e herói científico».
Toda a contestação epistemológica ao freudismo tinha tido em Karl Popper um aliado de peso. No célebre livro Conjecturas e Refutações (2003, Almedina), publicado pela primeira vez em 1962, a sua teoria da falsificabilidade como critério do conhecimento científico havia empurrado a psicanálise para o território da pseudociência. Mas foi com a edição integral das cartas de Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess, organizada por Jeffrey Masson, The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1887-1904, (1985, Harvard University Press; existe tradução brasileira na Imago), que, verdadeiramente, a defesa da psicanálise se tornou mais difícil.
Freud destruíra as cartas que lhe haviam sido enviadas por Fliess e tentara, sem sucesso, que a acólita Marie Bonaparte fizesse o mesmo às que, por acaso, a princesa conseguira comprar em Paris em 1936. A viúva de Fliess vendera a um livreiro as cartas que Freud escrevera ao marido, com a condição expressa de não poderem ser adquiridas pelo destinatário. Quando Marie Bonaparte informa o mestre da compra das cartas, este não deixará de insistir com ela para que as destrua. Uma primeira edição seleccionada da correspondência, controlada por Anna Freud, é publicada nos anos 50 com o título As Origens da Psicanálise. O resto é depositado na Biblioteca do Congresso, em Washington, com a condição de ninguém o poder consultar até ao ano 2000. Entretanto, Jeffrey Masson, ele próprio amigo de Anna, tendo chegado a ser director de projectos do Sigmund Freud Archives, lê as cartas. Desiludido e estupefacto com o seu conteúdo, acabará por afastar-se do movimento psicanalítico, convencido da falta de coragem moral e intelectual do homem que até então venerara.
Masson publicou outros textos críticos, nomeadamente The Assault on Truth: Against Therapy e Final Analysis, mas nada do que escreveu teve um efeito tão devastador como a edição integral das cartas. Nelas expunham-se, agora sem ganga apologética, aspectos da personalidade e do percurso do antigo mestre que provavam, entre outros, que o intrépido conquistador do inconsciente defendera teorias «científicas» indefensáveis (mesmo para a época), inventara pacientes, consumira cocaína durante pelo menos 12 anos, e, além do mais, que fora Fliess (cujas ideias tentou mais tarde denegrir), e não Freud, o responsável pela ruptura entre os dois. Se o mito persiste, desde então nunca mais pôde ser o mesmo.
Fora do espaço estritamente académico, seriam as feministas a fazer a maior mossa. Indignadas com a incompreensão confessada de Freud pelo «continente negro» — o que não o coibiu de apresentar várias teorias sobre o «segundo sexo» —, saíram a público para refutar, normalmente com grande veemência, a freudiana «inveja do pénis», reclamando o direito aos seus orgasmos clitorianos, vistos por Freud como sintoma de imaturidade. Afinal, era-lhes difícil levar a sério um homem que, perante uma situação de «ansiedade quanto a lançar-se de uma janela», a interpretava como uma fantasia feminina inconsciente de «ir à janela para convidar um homem a subir, como fazem as prostitutas». Uma história da carochinha em que só mesmo Fliess — o amigo de 17 anos que, em 1897, publicara As Relações entre o Nariz e os Órgãos Sexuais Femininos do Ponto de Vista Biológico — poderia acreditar.

Coisas que vou descobrindo por aí

Malcolm Lowry
Late of the Bowery
His prose was flowery
And often glowery
He lived, nightly, and drank, daily,
And died playing the ukelele.
(in Epitaph)

O Sorriso da Hiena (A Ilha)

A brisa rasa o cais pregueando as águas. Ancorados a cada um dos lados do pontão dormitam barcos embalados pela maré, gemendo ora uns, ora outros.
A mulher caminha sobre o paredão perpendicular à ria, um saco apertado contra o peito, detendo-se-lhe o olhar no que lhe parece ser o caos absoluto dos barcos — redes, remos, bóias, bidões, aparelhos, canas, cordas, velas enroladas, cadáveres de motores —, atenta à chiadeira de uma bicicleta que passa. Acena com a cabeça ao pescador que lhe antecipa o gesto, parada, à espera, como se pudessem o homem e a sua bicicleta eclipsar-se no ar, vendo-o afastar-se na direcção da primeira e única curva que a vista alcança, a estrada perdendo-se no horizonte. A mulher retoma o passo e lê chegada ao pára-vento: «Os barcos de carreira estão temporariamente suspensos».
Descansa no pontão, escutando o pulsar da ria nas escadas que descem do cais, atapetadas de algas e enxames de lapas expostos pela maré baixa. Derrama-se uma luz frouxa sobre a tarde e rolos de espuma desfazem-se contra as paredes do molhe. Um bando de gaivotas sobrevoa uma traineira. Persegue a fantasia das aves que planam já ao largo e nesse movimento se precipita a si própria, deixando para trás as casas, o traçado das ruas, as árvores do jardim, o bulício do cais, até a fachada da vila — onde, em primeiro plano, uma mulher sentada aperta um saco contra o peito — se esbater em nada.

— A cabeça de um homem é tão obscura como o equilíbrio de um gato.
Teria sido ele a dizer isto? Sim, mas só depois, muito depois.

A mulher sabe — como um bicho sabe da floresta a crepitar em chamas — que invocar a memória é pressagiar a morte. E então? Como renegar o sal das amoras, as casas caladas, a névoa que os alheia das sobras do mundo? Como esquecer o rosto tolhido pela doença, os olhos encovados, o corpo à mercê de uma desconhecida inventada numa manhã de Outono?
Olha o sol prestes a desaparecer e de súbito o adivinha, confirmando-o num movimento lento de cabeça, posto atrás dela exorcizada a febre. Num murmúrio, ouve-o perguntar-lhe na sua língua estrangeira: «Je peux vous embrasser?», e os braços dele rodeiam-lhe a cintura, o peito junto às costas dela, a cabeça pousada sobre a curva do seu ombro, e só então o sol se transfigura em lume, cobrindo-se o céu, eles, a Ilha — o mundo, seria? — de uma calma inteira que a mulher revive na cadência da maré pulsando nas escadas que descem do pontão para o mar. Uma benção.
Faz-se ouvir a cantilena do comboio que atravessa a vila. A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e já essa outra história se esvaía em fumo como uma cabeleira moura desmanchada ao vento.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, insiste o comboio enquanto se afasta.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e as traineiras-luzes-de-uma-vila-acesa se não soubéssemos, a Sul, só o mar.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e o maior equívoco que seria o da abnegação que espera recompensa.
A-vida-passa-depressa, a-vida-passa-depressa, e a nossa impotência em coincidir com o tempo das coisas desejadas.

— Sinto a tua falta, mesmo se contigo estou tão sozinho como sem ti — disse-lhe também o homem.
E, mesmo à porta, sentencioso:
— Todas as coisas são irreversíveis embora nada seja inevitável. A morte, apenas. Eis a regra do jogo.
— Cala-te! — pede-lhe a mulher sentada no cais tentando escutar as vozes.
E as vozes insistem: «Uma benção!»
«Uma benção!», insistem os barcos. «Uma benção!», segredam as árvores do jardim. «Uma benção!», repetem as casas de cal. «Uma benção!», regozijam-se os mortos nas campas. «Uma benção!», murmuram as gentes pelas ruas. «Uma benção!», sibilam as águas. UMA BENÇÃO!, grita o pescador na sua bicicleta antes de desaparecer atrás de uma nuvem em direcção ao Sul.
Edward Hopper, Rooms by the Sea

22/07/07

Viva Billy Wilder! Viva! Viva! Viva!

«Avanti!»: a mais divertida comédia romântica de todos os tempos.
Says who? Eu.

Delírios conservadores

«As jovens solteiras não são mães cada vez em maior número apenas porque isso traz compensações monetárias. É verdade que se o Estado-Previdência não existisse, a condição de mãe solteira seria o caminho certo para uma vida de miséria. [Mas] estas jovens absorveram uma cultura de recompensa imediata, e fazem sexo porque lhes apetece. O Estado-Previdência encoraja-as, é certo, mas não é a principal razão. A razão que está por detrás é a derrocada cultural», Paul Weyrich (o itálico é meu).

Computadores a preço de saldo

Sócrates vende computadores a 150 euros. Longe de nós duvidar da bondade da iniciativa ou, como alguns invejosos, insinuar negociatas obscuras ou manobras populistas.
A nossa pergunta não é política: quando avariarem, mandam-se para onde?

Jacques Brel - Les Bonbons

O meu belga preferido. Apesar dele não gostar de ser belga

Barbara - Ma Plus Belle Histoire d'Amour

A minha francesa preferida. E a quem sempre invejei a voz e o eyeliner

20/07/07

Se isto não é humor, pois já não sei que vos diga

«Meu caro Yankel: pedes-me que te escreva uma carta longa, e gostaria de te satisfazer, mas de facto não há muito para dizer. Os ricos continuam ricos e os pobres estão a morrer de fome, como sempre. O que é que isso tem de novo? No que respeita aos pogroms, graças a Deus nada mais temos a recear, pois já tivemos o nosso - na verdade, foram dois, e um terceiro não valeria a pena... Toda a nossa família se salvou, com excepção de Lippi, que foi morto juntamente com os dois filhos, Noah e Mordecai; artistas de primeira água, todos eles. Ah, sim, também há o Hersh. Perel foi encontrada morta na cave, com o bebé ao peito. Mas, como Getzi costumava dizer: «Podia ter sido pior; e não se pense no melhor, porque para isso não limites». Perguntaste pelo Hersh. Vai para meio ano que está sem trabalho. Não o deixam trabalhar lá na prisão... Mendiel foi esperto; levantou-se e morreu. Há quem diga que foi de fome, outros dizem que foi de tuberculose. Cá por mim, acho que foram as duas coisas. Francamente não sei do que te hei-de falar mais, a não ser da cólera, que está a dar cabo de todos», Sholom Aleichem

Pensamento reconfortante antes de ir para a cama

«Freud desbloqueia Mahler, de modo que ele volta a conseguir escrever e, em resultado disso, Mahler triunfa sobre o medo que alimentou toda a sua vida em relação à morte.
- Como é que o Mahler triunfa sobre o seu medo da morte? – perguntei eu.
- Morrendo. Pus-me a pensar nisso – e é realmente a única maneira.»
Woody Allen, «Cantem, tortas Sacher», in Pura Anarquia (acabou de sair)

Fim de Festa

Dean Martin - One For My Baby

ESTE VÍDEO DESAPARECEU DAQUI POR NABICE MINHA. SERÁ REPOSTO A HORAS PRÓPRIAS

Siga a festa

That's Amore - Dean Martin e Jerry Lewis

19/07/07

Jane Austen, essa desconhecida

A história foi hoje tornada pública. O cidadão inglês David Lassman pegou na obra de Jane Austen, Orgulho e Preconceito, mudou-lhe o título para Primeiras Impressões (que era aquele em que a escritora tinha pensado primeiro) e enviou-a para 18 das principais editoras britânicas, fingindo que era um manuscrito original. As 18 responderam demostrando desinteresse e recusando a publicação, e só uma se referiu às «semelhanças» com o romance de Austen. Sabe-se que muitos dos livros que hoje se consideram obrigatórios viram-se gregos para ser publicados (o caso de Proust é um clássico...). Mas o que é grave aqui não é apenas a recusa: é a ignorância. Percebe-se assim melhor que lá, como cá, pupulem (estava a apetecer-me escrever esta palavra, que acho bastante apropriada ao tema) as lídias, os melos, os cachapas, os peixotos...

Siga o Baile

Joaquín Sabina: «19 dias y 500 noches»

Que Viva o México III

Farolito por Agustín Lara. E Farolito também lá está, em «Debaixo do Vulcão»

Que viva o México II

Agustín Lara. A pensar na Madeira

Piensa en mi. Chavela Vargas

A Amália do México. Será?

Melodramas inesquecíveis

Brief Encounter: a excelência do drama. David Lean realizou em 1946 a mais dilacerante história de amor do cinema. Cada vez que o revemos desejamos que acabe de outro modo. É por isso que só o podemos ver em doses homeopáticas. Porque acaba sempre terrivelmente mal.

18/07/07

A book a day keeps the doctor away VI

É o livro definitivo sobre a idiotice humana e, mesmo assim, ficou inacabado. No original, pode ser descarregado da web e há uma edição portuguesa na Cotovia, traduzida por Pedro Tamen.

«On leur avait préparé une soupe à l'oignon, un poulet, du lard et des oeufs durs. La vieille femme qui faisait la cuisine venait de temps à autre s'informer de leurs goûts. Ils répondaient : "Oh très bon ! très bon !" et le gros pain difficile à couper, la crème, les noix, tout les délecta ! Le carrelage avait des trous, les murs suintaient. Cependant, ils promenaient autour d'eux un regard de satisfaction, en mangeant sur la petite table où brûlait une chandelle. Leurs figures étaient rougies par le grand air. Ils tendaient leur ventre, ils s'appuyaient sur le dossier de leur chaise, qui en craquait, et ils se répétaient : - Nous y voilà donc ! quel bonheur ! il me semble que c'est un rêve!
Bien qu'il fût minuit, Pécuchet eut l'idée de faire un tour dans le jardin. Bouvard ne s'y refusa pas. Ils prirent la chandelle, et l'abritant avec un vieux journal, se promenèrent le long des plates-bandes.
Ils avaient plaisir à nommer tout haut les légumes: "Tiens: des carottes! Ah! des choux." Ensuite, ils inspectèrent les espaliers. Pécuchet tâcha de découvrir des bourgeons. Quelquefois une araignée fuyait tout à coup sur le mur ; et les deux ombres de leur corps s'y dessinaient agrandies, en répétant leurs gestes. Les pointes des herbes dégouttelaient de rosée. La nuit était complètement noire; et tout se tenait immobile dans un grand silence, une grande douceur. Au loin, un coq chanta. »
Bouvard et Pécuchet, Gustave Flaubert

Viva a silly season! Viva Paris!

Tante Marie tinha uma relação problemática com os parisienses. Vivia numa pequena quinta em Cognac (sim, exactamente aí onde se destila a excelência francesa do mesmo nome), rodeada de galinhas, patos e coelhos, orgulhosa das suas couves e das suas cenouras. No quintal, lembro-me, havia uma árvore que dava dióspiros.
A partir de Novembro a lareira estava sempre acesa na sala de entrada da casa, e Tante Marie aproveitava o lume para nos preparar deliciosas galletes à maneira bretã, que exigia que comêssemos indiferente aos nossos protestos contra o presumível acréscimo de matéria adiposa, que ela assegurava ser uma garantia contra a descida das temperaturas.
Em Cognac raramente nevava, mas, ainda assim, fazia muito frio. A atmosfera tornava-se não mais do que rústica, como se terá percebido, e nesses meses invernosos as nossas almas elevavam-se na melancolia dos entardeceres prematuros degustando patés e queijos e tartes e Bordeaux, tudo de primeiríssima qualidade.
Por vezes, quando se encontrava na horta debruçada sobre os vegetais, examinando-os com o rigor que se imagina Madame Curie poria nas suas anotações científicas, o barulho de um carro mais veloz interrompia a revista às cenouras e às couves e Tante Marie exclamava em tom reprovador: Ah! voilà les parisiens!
Até poderiam não o ser, já que para esta mulher pequena e de aspecto frágil, capaz, todavia, de despachar numa só tarde dez ou mais coelhos de um golpe certeiro, parisien era, tão-só, sinónimo de citadino. E, sobre estes, tinha ideias tão definitivas como o gesto com que aviava os desafortunados albinos: pobres Bouvard e Pécuchet passeando-se pelos campos nomeando em voz alta os legumes: «Olha, cenouras! Ah, couves!», trocando sempre as referências.
Para Tante Marie, essa era a prova provada da idiotice urbana. Estivera em Paris apenas uma vez. Logo após o casamento, já Hitler estiraçava os seus tentáculos pela Europa fora. Nessa altura, o mercado Les Halles não se convertera ainda no gigantesco centro comercial que o tempo haveria de provar não ter sido uma grande ideia, o pitoresco Marais não suspeitava sequer do seu futuro gay-chic nem a rive gauche da explosão do Maio de 68. La Defense, claro, não existia, e nem nos sonhos mais megalómanos de François Mitterand lhe passaria pela cabeça vir a ser o arquitecto de La Grande Arche, sem dúvida o melhor de La Defense, esquadria perfeita com o Arc-de-Triomphe que, esse sim, Tante Marie pôde visitar, garantindo, no entanto, a quem a quisesse ouvir, que era bem mais bonito visto de longe.
Quanto à Torre Eiffel, apesar de se ter recusado a subir os 1 665 degraus que a teriam levado ao topo das suas 10 100 toneladas (contas feitas, 324 metros, incluída a antena), Tante Marie ainda agora recordava como se sentira esmagada vertigem daquele monstro de ferro.
De regresso a Cognac, comprada uma imagem da Notre Dame que os anos e o chauffage haveriam de amarelecer, pouco tempo depois os alemães fariam a sua entrada triunfal na Cidade das Luzes, para se retirarem cumprido o banho de sangue que não pouparia Tante Marie à morte de um sobrinho, alguns vizinhos e conhecidos. Nunca perdoou aos boches, a quem odiava ainda mais do que aos parisien, e isso é já dizer tudo.
Mas nem os nazis ousaram reeditar a demência de Nero, o incendiador de Roma. Apesar da carnificina, Paris nunca chegou a arder.
Sabendo-se, pois, que Tante Marie nunca mais lá voltou, podemos – no momento em que me passeio, tantas décadas decorridas, pela gigantesca Feira da Ladra que são os Puces de Clignancourt, em busca de um blusão de cabedal à Major Alvega – situá-la sem grande risco à la campagne, qual alquimista submersa em grandes panelas de ferro mexendo compotas que tardam a chegar ao ponto.
Estávamos no Outono e eu desesperava no meio de uma multidão mestiça por encontrar o «meu» blusão. O amigo que me acompanhava desesperava ainda mais do que eu.
Foi então que avistei uma tenda de chapéus. Milhares de chapéus. Chapéus de todas as formas e feitios, usáveis e menos usáveis, de colecção, de teatro, masculinos e ultrafemininos, de Verão e de Inverno, em bom ou mau estado... enfim, uma tenda-paraíso para apreciadores dos ditos. É o meu caso. Eu adoro chapéus, ainda que reconheça que é difícil usá-los.
A mulher atrás do improvisado balcão aproximou-se de mim naquele jeito nonchalance que só as temíveis consièrges parisienses parecem não praticar. Explico-lhe que vim à procura de um blusão de cabedal e que não posso agora trocá-lo por um objecto tão inversamente delicado como um chapéu. A resposta saiu-lhe pronta: Ah, mais justement, ça serait très féminin!
A incoerência convence-me. Regresso de Clignancourt com um chapéu negro de amazona de véu comprido a flutuar ao vento....
Nessa noite, ao entrar no Le Mazet, bar que então frequentávamos no Quartier Latin (mesmo ao lado do Le Procope, o café mais antigo de Paris, eleito de Rousseau e Voltaire, só para não ir mais longe), e onde nos deliciávamos com balões aquecidos de Cognac que nos provocavam arroubos de nostalgia à lembrança de Tante Marie, o dono precipita-se do balcão e dirige-se-me de braços abertos:
Mademoiselle, vous êtes ravissante!
Em que outra cidade do mundo nos acolheriam desta forma, só por trazermos na cabeça um despropositado chapéu visivelmente encombrant?
E outra pergunta. Poderá o Canal Saint-Martin, anacronismo perfeito de uma cidade frenética, precipitar uma declaração de amor?
Foi precisamente aí, numa das suas margens, que Flaubert marcou o encontro decisivo entre os dois manga-de-alpaca (Tiens: des carottes! Ah! Des choux!), aquele que os levaria depois à comunhão suspirosa de quão bem estariam no campo!
Quanto a nós, há já alguns parágrafos que abandonámos Tante Marie, rendidos à beleza desta cidade que guarda, para além dos imensos boulevards rasgados por Haussmann, recantos como este, onde o tempo se submete ao ritmo lentíssimo do escoar das águas pelas comportas abertas, fazendo-nos recuar a essa tarde novecentista em que Bouvard e Pécuchet iniciam o mais maravilhoso de todos os livros inacabados.
Paris. Decididamente burguesa. Ostentatória. Por vezes arrogante e demasiado formal. Cidade onde até o garçon de café se crê herói da Comuna, isto sem demérito para os garçons nem excessiva admiração por aquela, que, como se sabe, fez bastante mais vítimas para além de Antonieta, rainha que terá subido ao cadafalso na que hoje se chama Place de la Concorde sem perceber sequer o que lhe acontecia. Cidade onde já foi o tempo em que «as coisas não acontecem de todo se não acontecem em Paris». Mas caramba! Mesmo enterrada a boémia que caracterizou durante anos esta capital, quem não se comover com o we always have Paris! que mande este texto às urtigas.
Porque eu só queria contar isto: era uma tarde de Primavera num jardim de que esqueci o nome. Dois namorados aproximam-se e, o tempo de acender o meu Bastos legère sans filtre (um marca entretanto desaparecida), sentam-se no banco em frente ao meu. Lia um livro (não, não era Proust), e quando voltei a página já eles se confundiam, beijando-se, abraçando-se e escorregando irremediavelmente para a posição horizontal, cegos aos olhares que, diga-se em abono da verdade do que agora escrevo, se mostravam bastante complacentes para com a efusividade primaveril do jovem casal.
Foi então que fez a sua aparição o clochard, encarnação perfeita de Michel Simon em Boudu Sauvé des Eaux.
Isto passa-se, portanto, no tempo em que ainda existiam Bastos legère sans filtre e vagabundos por conta própria. O homem dirige-se para os corpos confundidos. Toca nas costas do rapaz. Não há resposta. Toca de novo. Nada. Abana-o já com algum vigor quando um rosto ruborizado e de cabelos desgrenhados se destaca no meio da confusão de braços e pernas.
Oui? Tens um cigarro? O rapaz está levantado e revista os bolsos enquanto a namorada compõe a blusa. Não tinhas deixado de fumar?, diz-lhe ela. Ah! Mais oui, mais oui, responde-lhe ele às voltas com as mãos inúteis. O clochard encolhe os ombros e segue. Passa por mim. Eu estou ainda a fumar. Tu as vu les amoureux?, confidencia-me en passant. Não repara sequer que lhe estendo o maço.
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac que era um viajante solitário e nunca conheceu Tante Marie.
FOTO: Robert Doisneau

17/07/07

Livros com viagens dentro. Viva a silly season!

Robyn Davidson tinha um sonho desde menina. Atravessar o deserto australiano montada num camelo. Concretizou-o aos 27 anos e depois escreveu um livro de uma inteligência à prova de fogo. Foi trazido para Portugal pela Quetzal em 1999, sob o título Trilhos. É uma grande leitura de Verão, de preferência ao fresco.

Viva a silly season! Viva Paraty!

Há palavras cujo uso - ad nausea - banalizou de tal forma o seu significado que, quando nelas tropeçamos, o fundo de censor que habita cada um de nós, se menos reprimido, não resistiria a puxar do lápis azul, numa versão moderada do outro que puxava do revólver.
Paraíso, por exemplo. Sobretudo se se trata de um texto de viagens, logo ali apetece amaldiçoar o hiperbólico escriba, condenando-o, por exemplo, a três meses de férias na Quarteira. Para além de, quase sempre, se tratar de uma descarada patranha, deixa-nos sem distintivo face ao que poderá ser um resquício desse Eden primordial. Digo resquício, visto que - é do Livro -, do Paraíso não se sabe a geografia, na certeza de que para lá não há passagens low cost.
O caso é este: Paraty poderia caber nessa categoria. Só que, dado o desgaste linguístico (bastante mais obnóxio que a ferradela na maçã, sublinhe-se), ninguém iria acreditar. Abandonem-se, pois, os predicados e exponham-se os factos. E o facto é que chegámos lá de noite.
Com sonos acumulados, tanto eu como o fotógrafo concordámos em dormir cedo. Uma batida tremenda despertava-me passadas escassas horas, como se a minha cama (comigo lá dentro, e aí residia o problema) tivesse sido catapultada para um sambódromo adventício.
Não era Carnaval. Obrigada a regressar a uma dimensão do real onde todos, menos eu, pareciam divertir-se altamente ao ritmo de intermináveis cirandas – na origem, bailes de roça assistidos por viola, violão, cavaquinho e pandeiro de adufo, as mulheres rodando as saias e os homens sapateando tamancos de madeira enquanto o mestre virandeiro marca a cadência improvisando versos: imagine-se o estardalhaço! –, e quando já me dispunha, ensonada porém pragmática, a render-me ao «se não podes derrotá-los junta-te a eles», eis que a toada se torna mais tranquila, invocando sucessos melosos lá da década de 40... Eram umas três da manhã, eu ressuscitara ao som de um ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá repetido à exaustão, por isso que se me seja dispensado o rigor discográfico.
No dia seguinte deslindava-se o motivo da festança: a cidade comemorava 335 anos de emancipação política e o que eu estivera a ouvir fora a Grande Ciranda de Paraty, e depois a Orquestra New York Society Band, a actuarem no Mercado do Produtor Rural, por acaso MESMO atrás do meu hotel. O fotógrafo, que não dera por nada, alojado noutra estalagem fora do centro histórico, nem por isso foi poupado ao ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá que trauteei toda a manhã. Aguentou estoicamente até à hora do almoço. À sobremesa, depois de uma irrepreensível galinha de cabidela (a tradução local é «ao molho pardo«), arremeteu-me com um «Não se canta à mesa!» fulminante. E ameaçou amordaçar-me.
A primeira referência conhecida ao sítio de Paraty recua a 1554, data em que Hans Staden foi feito prisioneiro pelos índios desta região localizada no extremo Sul do Estado do Rio de Janeiro (a 248 quilómetros do Rio e 330 de São Paulo), aventura que deixou registada em Diário. Os seus habitantes originais eram os índios Guaianá, que se ficavam pela serra no Verão e desciam ao litoral durante o Inverno, ao encontro de clima mais ameno. A desova dos cardumes de tainhas e piratis (não confundir com parati) durante o tempo fresco, era outra das razões que levava os Guaianá a acercarem-se do mar, que por aqui forma uma baía protegida.
Em língua tupi «parati» significa golfo e, conhecido o costume dos indígenas de recorrerem aos acidentes geográficos para baptizar os lugares, fica esclarecida a toponímia da cidade. Desses ocupantes primitivos restam as aldeias de Tekoa Araponga, na Vila do Patrimônio, que reúne 40 Guarani, e a Aldeia de Tekon Tatim, onde vivem cerca de 100, ambas em Reservas Florestais Federais.
Foi esta última que tentámos visitar. A caminho de Paraty Mirim – lugarejo encantador a 17 quilómetros de Paraty, cujo porto serviu durante muito tempo para o desembarque ilegal de escravos, até entrar em decadência a partir do século XIX –, à beira da estrada de terra, não havia a certeza de lá podermos entrar. Dependia do pajé.
Esclareço. Aqui, os índios não vivem no meio das outras pessoas. A má consciência dos políticos levou-os a «ceder-lhes» terras onde, apesar das eventuais boas intenções, residem condenados a um ostracismo proteccionista. Assim, a gente vai na estrada, vê uma placa a dizer Propriedade Privada - Reserva Federal, umas pessoas sentadas junto a umas casas mesmo ali, e se quiser perguntar que dia é hoje?, por exemplo, tem de mandar um fax para Brasília pedindo autorização à FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Isso, ou esperar que o pajé, que é o índio responsável pela aldeia, esteja bem-disposto e nos deixe aproximar.
Parado o jipe, Armando (guia credenciado), conhecido por Vagão, e Miriam Cutz (a nossa incansável cicerone) avançam para tentar falar com o cacique (o termo não tem aqui sentido pejorativo). É então que uma criança se aproxima da viatura junto da qual eu e Henrique, o fotógrafo, aguardamos o resultado das negociações.
A biologia explicará, ou não, o meu instinto maternal exacerbado. Na circunstância, deu-me para pegar na criança ao colo e afastar-me do jipe, com a intenção de a entregar a alguém e desviá-la da estrada. Ao fim de meia dúzia de passos, sai-me ao caminho uma mulher mal-encarada – e mal oxigenada. Olha-me como se reconhecesse em mim um membro de alguma organização dedicada ao tráfego de menores e rosna: «Não podem tirar fotografias sem autorização».
Eu não tenho máquina, carrego apenas um pequenino índio. Controlo um desejo primitivo de a esbofetear (que a biologia também explicará) e respondo que só pretendo proteger o bebé, que uma irmã (presumo) acaba de levar de volta. Entretanto, as negociações prosseguem. Vagão e Miriam não conseguem falar com o pajé. Barrados pelos dois responsáveis da FUNAI (além da mulher há um outro elemento, menos desagradável mas igualmente inflexível), acabamos todos por nos vir embora. «Se quiserem entrar (mas onde verá o homem a porta?!) mandem um fax para Brasília», relembra o sujeito da Fundação.
Solto a animosidade: «Isto é ofensivo! Tratam-nos como se fossem débeis mentais!» Vagão, até agora calado, sugere, expedito: «Eles ao final do dia estão sempre em Paraty a beber cerveja e a pedir esmola, tiram as fotos que quiserem». Ninguém responde e, em silêncio, dá-se por encerrado o episódio que lamentavelmente se convertera em «ir ver os índios».
Coisas menos desagradáveis. Aparecida, por exemplo. Se a vida fosse um pouco mais cor-de-rosa, quem sabe ela partilhasse as passerelles com a própria Gisele Bundchen! A jovem surgiu-nos como uma aparição na cozinha do Sr. Arlindo Sacramento, velho de incríveis olhos azuis que tem como máxima de vida, Brincar e caçoar não pega nada.
Moradores de uma pequena casa na serra, a caminho da Cachoeira da Pedra Branca, nos arredores de Paraty, recebem-nos com um hospitaleiro Sejam bem chegados!, oferecem-nos água e bananas doces e indicam-nos o caminho da queda de água onde não somos os únicos a mergulhar.
Tínhamos partido de manhã para conhecer a Estrada da Serra, nome pelo qual é conhecida a Estrada Real (ou Caminho do Ouro), troço de engenharia viária que explica por que razão Paraty teve importância fundamental na história brasileira, chegando a ser o segundo maior porto do país (e um segredo de Estado durante todo o século XVIII).
Dispomo-nos a repisar a via por onde os portugueses transportavam (obrigatoriamente, já que este era o único itinerário permitido) o ouro vindo do interior, de Minas Gerais, até ao porto de Paraty, e daí para Portugal via Rio de Janeiro. Calcetado por pedras enormes (a que chamam estilo pé-de-moleque), que o tempo e os elementos não conseguiram vencer, visitamos um trecho preservado de oito quilómetros.
Tudo parece ter tido início com a expedição de Martim Correa de Sá, em 1597, à frente de 700 europeus e 2 000 índios, visando refazer um antigo trilho dos Guaianás, que, por sua vez, teriam usado caminhos abertos pelos animais. Essa autêntica «via romana» (chegou a alcançar 1 200 quilómetros), viveu em permanente engarrafamento durante a febre do ouro que começou em 1700, juntando homens e animais de carga, escravos e salteadores, tropas e aventureiros, numa viagem que durava mais de 45 dias. No final do século XVIII, com a abertura do Caminho Novo, que chegava ao Rio via Petrópolis (onde se instala a Corte), mais o enfraquecimento do negócio do ouro, o Caminho de Paraty entra em declínio.
O silêncio é de chumbo. É difícil imaginar a azáfama que por aqui já se viveu, os gritos, os assaltos, as mortes, a fúria e o sangue dos homens arrebatados pelo metal precioso. As árvores têm um porte extraordinário, há plantas que se enroscam mal lhes tocamos, a água requebra-se em riachos cristalinos, um musgo vermelho-vivo garante a pureza absoluta do ar. A meio de uma subida mais íngreme, uma placa assinala «Canela Fedorenta». Ultrapassada a árvore, o insólito letreiro ganha todo o sentido: faz-se sentir um cheiro intenso a estrume, de que o nosso guia se diverte a testar o efeito. Uma vista belíssima sobre a baia de Paraty espera-nos no alto. Nesse dia almoçamos na Fazenda Murycana, que recua ao século XVII, eleita de D. Pedro I que nela pernoitou várias vezes acompanhado da amante, a Marquesa de Santos. Uma visita ao antiquíssimo engenho onde ainda hoje é produzida de forma artesanal a aguardente, envelhecida depois em pipas de carvalho e cerejeira, encerra o repasto.
Este é um dos seis engenhos que restam em Paraty, que já contou com mais de 100. Porque ao ciclo do ouro seguiu-se o da aguardente (depois, ainda, o do café), permanecendo esta a mais afamada do Brasil. Fazem os locais questão de precisar que na região «nunca se produziu cachaça mas pinga – que vem a ser aquela aguardente fabricada exclusivamente a partir da garapa, do caldo de cana fermentado e destilado, depois da fervura e evaporação, que pinga na bica do alambique».
Explicação dada, estamos agora a corroborá-la no Refúgio, onde se bebe a melhor caipirinha local. Dirigido por Zé Paulo, um conversador nato, o restaurante ocupa local privilegiado frente ao porto, em terreiro largo. O lugar certo para se estar ao final da tarde. «O meu avô era de Beirute, e com esta minha cara de rato árabe do deserto confundem-me com o Bin Laden. O Amyr Klink, por causa do nome, pensam que é parente do Sadam», graceja Zé Paulo.
Precisamente hoje, durante um passeio pelo mar, tinhamos avistado a ilha onde mora Klink, apenas uma entre as 65 que povoam a costa.
As serras, envolvas em névoa, vão-se aclarando à medida que a escuna avança, multiplicando-se ad infinito, como se deslizassemos num cenário pintado por Wang Fo. O recorte doce da paisagem, as formas arredondadas, as águas calmas, tudo isso explicará muito da leveza dos brasileiros, expostos a elementos que, longe de se oporem aos homens (como no México, oh lá lá!), antes parecem acolhê-los. Apesar do gigantismo dos morros que avistamos, é a mansidão que predomina sobre o medo que podemos imaginar ter assaltado os primeiros europeus aqui chegados.
Aparecida acompanha-nos e mergulha enquanto Henrique lhe testa a fotogenia. Um dos membros da tripulação regressa à superfície com estrelas-do-mar, explicando-nos que não se podem virar ao contrário porque morreriam. Uma mãe procura o filho à beira da histeria: «Meu filho afundou!» São apenas paulistas viciados no stress da cidade grande. Na ilha do Mantimento, do presidente da Fiat brasileira, junto à qual estamos ancorados, descobrem-se micos-leão dourados, uma espécie de macaco raríssima e em vias de extinção. Na ilha da Sapeca, o prazer do ócio degusta-se num tasco de madeira, enquanto um gato de olhos azuis disputa os restos do almoço a uma cadela chamada Menina.
A poucos metros, num outro ilhéu, adivinha-se uma construção de gosto duvidoso, misto de Taj Mahal e pagode chinês. Um dos tripulantes do barco explica-me que foi uma oferta a Collor de Melo, que teve um sonho de marajá. A casa terá envolvido corrupção, o nome de António Carlos, ex-governador da Bahia (petit nom, Toninho Malvadeza), a empresa de construção viária OAS (vulgarmente conhecida por «Obras Arranjadas pelo Sogro») e uma doação a um funcionário, entretanto falecido, cuja viúva decidiu não cumprir o «contrato». Ficou com a casa para ela. Um provérbio local garante: «Brasileiro estraga de dia, Brasil recupera de noite». Por enquanto, o sonho de marajá continua de pé.
Exactamente por motivos inversos é que Paraty foi declarada Monumento Histórico Nacional em 1966, segundo a UNESCO «o conjunto arquitectónico mais harmonioso do século XVIII no Brasil». O centro histórico, de planta em leque e cobrindo grande parte da cidade, é habitado e vivido pelos locais (não se tratando, portanto, de postal ilustrado para turistas).
Explode numa panóplia de cores formidável, com as casas listadas por azuis, bordeaux, verdes e amarelos, janelas protegidas por um delicado entrançado de madeira (muxaribe), símbolos maçónicos nas fachadas e nas esquinas, «calçamento pé-de-moleque» nas ruas cuja leve depressão central permite que as águas entrem e saiam de Paraty banhando-a nas marés de lua cheia, pequenas lojas, bons restaurantes de cozinha caiçara (um misto da culinária trazida pelos europeus e paladares índios), vegetação exuberante tombando do interior das casas, como é o caso da Rua do Fogo, assim conhecida por ter sido ponto de encontro de marinheiros e mulheres de «vida fácil».
E se foi o Caminho do Ouro que trouxe fama a Paraty, foi também, paradoxalmente, o seu declínio que a preservou. Quando, em 1885, é inaugurado o caminho de ferro entre São Paulo e o porto do Rio de Janeiro, Paraty apenas vê confirmada a sua queda.
Até há pouco tempo chegava-se aqui como no passado: de barco, vindo de Angra dos Reis, ou, a partir de 1950, por terra, via Cunha, por uma estrada que apenas era transitável quando não chovia, em parte decalcada sobre o velho caminho do ouro e do café. Fora já por esta que chegara, em 1929, o primeiro automóvel, incapaz, contudo, de fazer o percurso de volta. Um ano depois, a estrada seria destruída por tanques militares que se dirigiam a São Paulo durante a Revolução dos Trinta, só reabrindo ao fim de duas décadas.
«É sempre pelos caminhos que Paraty se salva e se perde», cita Diuner Mello, historiador local autodidacta, conhecedor dos meandros da cidade como poucos. E salvar-se-á novamente, já na década de 70, com a abertura da Rio/Santos, que a subtrai a quase um século de isolamento.
A poucos quilómetros, as praias da Trindade, em tempos famoso destino hippy, também só há pouco têm acesso por estrada alcatroada. Alternativa banhista às ilhas, trata-se de uma vila de pescadores sujeita a forte pressão imobiliária nos anos 70, quando foi palco que uma rocambolesca ocupação por parte de uma empresa multinacional, que meteu jagunços e tiroteio. O conflito foi parar à justiça e a Associação dos Moradores Nativos e Originários da Trindade conseguiu preservar a vila, encravada hoje no Condomínio de Laranjeiras, um casario de luxo privado guardado a metrelhadora e onde os moradores só usam helicóptero.

A nossa viagem está a chegar ao fim. Tomamos um copo de despedida no Refúgio e à terceira caipirinha uma enorme luz desaparece no firmamento sem deixar rasto.
Um parênteses. Para além de tudo o resto, que é imenso, Paraty é também conhecida pelo seu «clima peculiar». Abreviando: OVNIS, pessoas que se passeiam compulsivamente de madrugada pelas ruas curvas do centro, «cavalos de Diana que pastam nas praças a dor alheia» (e é verdade que os animais andam soltos à noite), passado maçónico, esquisites templárias, enfim, a habitual panóplia new age... Naquele momento, a beleza do lugar, o céu tão estranhamento aceso e, concedo, as caipirinhas, terão permitido que me enredasse nessas coisas improváveis.
O fenómeno gera controvérsia à mesa. Miriam reconhece não saber do que se trata, mas a verdade é que lhe pareceu grande de mais para estrela cadente. Henrique, positivo, recusa mistérios. Eu, a única que estava de costas para o «objecto», não sei o que dizer. Cito Zé Paulo, o rato do deserto: «Não existem problemas. Existem enigmas», uma frase roubada já nem ele se lembrava onde.
E é quando proponho a última caipirinha. Aquela. A tal. A one for the road. Juro. Mas ninguém me acredita. Vá-se lá saber porquê.
FOTO: Aparecida, fotografada por Henrique Seruca, com o fato de banho que lhe emprestei para a ocasião e que ainda no outro dia levei à piscina.
NOTA: Este texto é para Zé Paulo

16/07/07

Melodramas inesquecíveis

Ano: 1970
Realizador: David Lean
Intérpretes: Robert Mitchum, Trevor Howard, Sarah Miles, Christopher Jones, John Mills, Leo McKern, Barry Foster, Archie O'Sullivan, Marie Kean...
Um drama amoroso e político passado na Irlanda do princípio do século XX que inclui Mitchum no seu melhor, um louco no seu melhor, John Mills, e uma soberba Sarah Miles que acaba com o cabelo cortado à escovinha. Conta-se que a famosa cena onde Rosy (Sarah Miles) se passeia de chapéu pela praia foi uma carga de trabalhos para filmar. Ou a luz não estava certa, ou o mar não estava certo, ou, ou, ou. No dia que em que todas as condições pareciam estar reunidas, David Lean chegou ao local de filmagens e... deu por falta das gaivotas. Foi preciso ir à vila mais próxima comprar todo o peixe disponível. Lançado ao mar, as aves lá apareceram a cumprir o seu papel no cenário. Grandioso. Um dos filmes da minha vida.

E por falar em Lisboa, tomem lá O'Neill

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por suiços habitada,
onde a tristeza vil e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

daqui deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira de vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristolho que se apaga;

daqui, só paciência, amigos meus!
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Lisboa

Acabou-se. Costa vai para a Câmara por 2 anos. Votaram nele 29,5% dos lisboetas. Os que não votaram nele nem em nenhum dos 12 candidatos somaram 62,6%. Ou seja, nunca houve tanta fartura nem uma abstenção tão grande. Quando a esmola é muita o pobre desconfia? Sei lá eu. Uma cidade que tem um Palácio das Necessidades, logo abaixo a Travessa dos Contrabandistas e um pouco mais além o Cemitério dos Prazeres...

15/07/07

E por falar em viagens

Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!)

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar a quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver noutros países?
- Bem queria, Sr. O'Neill! E... as varizes?
Que vergonha, rapazes!, poema de Alexandre O'Neill

Onde está Bin?

Osama Bin Laden voltou. Desde Junho do ano passado que não dava um ar da sua graça. Entretanto, ao fim destes anos todos, correm as mais diversas teorias sobre o seu paradeiro. Que nunca existiu, que se passeia disfarçado de peru pelo interior dos EUA, que vive numa ilha paradisíaca do Second Life, que gere um empreendimento de luxo no Allgarve, que, enlouquecido, continua nas montanhas do Afeganistão à espera de Rambo, etc., etc., etc. O Senado Americano, já desesperado, acaba de subir para 50 milhões de dólares o prémio a quem der informações fiáveis sobre o esconderijo de Osama. Só um senador votou contra, percebendo a inutilidade do gesto. Tem toda a razão. Embora a mim nunca me tenham perguntado como se poderia apanhá-lo e, embora, verdade seja dita, os 50 milhões me dessem muito jeito, dou gratuitamente a seguinte sugestão. Largar Bush de pára-quedas sobre um país muçulmano, tinha que ser um assanhadamente muçulmano, explicando-lhe o seguinte:
«George, meteste-nos neste sarilho. Juraste que apanhavas o homem, dead or alive, e até agora zero, nothing. Ainda por cima fizeste batota e puseste-te a assobiar para o ar que havia armas escondidas no Iraque. Estás quase a regressar ao petróleo e preparas-te para nos deixar com a batata quente na mão. Ora bem, don’t even think about it. Agora vais tu procurá-lo. Quanto o encontrares, volta para casa. Estarás perdoado. Não chores. Cumpre a tua obrigação... Go! Go! Go! Cmo diria o Schwarzenegger, hasta la vista, baby
Haviam de ver se não o encontrava!

14/07/07

Viva a silly season! Viva Madrid!

Terminado o almoço, os sentidos, viciados no prazer da nicotina, reclamam por um Monte Cristo. O amigo do fotógrafo acende a cigarrilha com manifesta volúpia e o cheiro intenso do tabaco sobrepõe-se ao aroma discreto do café solo - que em Espanha bebem-no de preferência con leche. Na mesa ao lado, um homem de provecta idade termina, também ele, a refeição. O fotógrafo faz um sinal ao amigo que logo tenta contrariar a direcção do fumo, sacudindo desajeitadamente a mão em movimentos nervosos. Ao notar o embaraço, o caballero ― mais do que o dramatismo da língua, o que aqui nos surpreende é o recorte preciso das palavras ― logo exclama: No se preocupe! Fume usted lo que quiera. Yo ya no puedo fumar pero el humo me estimula... Este é o espírito da coisa.
Os espanhóis, é dos livros, falam alto e vivem na rua. O termo ― espanhóis ―, ao qual torcerão o nariz alguns nacionalistas mais politicamente correctos, ganha um sentido maior em Madrid, onde cerca de 80% da população é proveniente de outras regiões, ou do estrangeiro. Gentes de Castela, Astúrias, Andaluzia, Galiza, Málaga, Catalunha, País Basco... (no total, são 20 possibilidades) mesclam-se nesta cidade, capital de um país feito de geografias e idiossincrasias várias. Tal mestiçagem é antiga. Notava já Calderón de la Barca, dramaturgo madrileno do século XVII, que Es Madrid, patria de todos/ (pues en su mundo pequeño/ son hijos de igual cariño/ naturales y extranjeros...).
Apesar da gravidade arquitectónica e da escala esmagadora (para um peão, atravessar uma avenida quando o sinal passou a intermitente requer, no mínimo, bravura de espírito e destreza de pernas), Madrid só pode orgulhar-se do seu estatuto há relativamente pouco tempo. Porque embora a sua fundação pelo V Emir independente de Córdoba, Mohamed, recue à ocupação árabe da Península, a elevação a capital do reino apenas se dá em 1556 quando Filipe II (I dos nossos) assim o decide.
Henrique Garcia Pereira, um português adepto do ethos espanhol, sugere no seu livro Arte Recombinatória que a escolha terá recaído sobre Madrid, e não sobre Lisboa, por, dizia-se, aí não haver mosquitos. Subtraída ao título entre 1601 e 1606, por decisão de outro Filipe (III, II dos nossos), no ano seguinte retoma a ordenação que mantém até hoje.
Seria agora chegado o momento de desenvolver matérias eruditas e listar datas e acontecimentos relacionados com esta villa, que não ciudad, mas que me perdoem o conselho: qualquer guia menor os informará, melhor do que eu, dos meandros historiográficos. Cite-se antes Antonio Ferres, romancista e poeta madrileno que assim pontificou à saída da livraria Casa del Libro, onde marcáramos encontro: Madrid es un disparate. Na língua do autor de Los Confines del Reino isto quer dizer: um excesso.
Não nos precipitemos, contudo. Porque o rendez-vous com Ferres apenas se deu três dias após a partida. Por enquanto, ainda estou no Aeroporto da Portela às voltas com um B.I. caducado.
Foi só à chegada ao check-in que uma funcionária zelosa repara na data prescrita e me recusa o embarque. Em vão protestei e em vão supliquei. À tentativa frustrada de a convencer da relatividade einsteiniana, seguiu-se uma corrida rocambolesca contra o tempo entre o aeroporto e a Praça do Areeiro, pontuada por telefonemas ao fotógrafo, de guarda à minha mala, a dar-lhe conta das manobras. No Arquivo de Identificação, onde em meia hora me resolvem o problema, não podiam ser mais prestáveis.
Acalme-se! Acalme-se! Vamos fazer os possíveis! Dê cá o dedo! Vai ver que consegue! E as fotografias? Não tem?! E está à espera de quê? Vá já aí ao lado! Deixe isso, nós preenchemos! Despache-se, despache-se! Poupo-vos ao stress. Numa hora fui e voltei ― devidamente identificada ― e à hora prevista sentava-me no avião rumo a Madrid. Tudo está bem quando acaba bem, mas, por agora, ainda estamos nos preliminares.
A correria terá sido premonitória. Uma espécie de ritual de iniciação ao que me esperava. Felizmente, por melhores motivos. Assim, e para abreviar: na primeira noite recolhemos ao hotel à 01h30m. Chegáramos ao aeroporto de Barajas por volta das 13h00 e, visto tanto eu como o fotógrafo acumularmos sonos atrasados, tornou-se humanamente impossível prosseguir com as digressões madrilenas que, todavia, iniciámos logo na primeira noite com inegável espírito de missão. No segundo dia, desistimos pouco antes das 03h00; no terceiro, perto das 04h00; no quarto.... Creio que me faço entender. Numa manhã de domingo, no Rastro, submersos num mar de cabeças ondulantes entre dois flashs e incontáveis cafés sempre solos, não soube o que responder ao fotógrafo quando este, atónito, me interpelou: Ele é de noite, ele é de dia. Mas quando é que estes tipos dormem?
Esta cidade podia servir de mote a um anúncio do Red Bull. Tente, pelo menos a partir de 5ª feira, apanhar um táxi às 05h00 da manhã e compreenderá do que falo (acrescente-se que, ao contrário de Paris, táxis é o que não falta). Ou jantar sem fazer marcação. Ou ir a um espectáculo sem ter reservado bilhete. O ritual começa pelas tapas ― termo que, segundo a tradição, terá resultado do sensato despacho do rei Alfonso X que obrigava a acompanhar o vinho servido nas estalagens de Castela por um pequeno prato de comida que era colocado a tapar o copo, diminuindo assim efeitos etílicos indesejáveis (e não será por acaso que este rei é conhecido pelo cognome de O Sábio) ― continua com as copas, prossegue nas discotecas e termina nos after-hours.
No domingo, por volta da uma da tarde, na Casa António La Cebada, rostos protegidos por impenetráveis óculos escuros denunciam muitas horas sem dormir. Enquanto uns bebem a última caña, outros aguardam (como nós) uma suculenta tortilla servida ao som de ritmos flamencos, confesso que um pouco estridentes...
Foi assim que, incautos, nos vimos obrigados a desistir do restaurante Los Girasoles, ao fundo da calle Hortaleza, zona de nítida renovação urbana, contígua à Chueca, bairro onde a comunidade gay marca pontos e prova o seu talento para fazer reviver as cidades. Não havia hipótese. Na noite anterior trocáramos, em boa hora, o jantar por uma ida ao Café Central, a que chamam a catedral madrilena do jazz, mas hoje queríamos sentarmo-nos e comer de faca e garfo. Eram quase 10h00 da noite ― cheio ― e as reservas estavam completas, mesmo para as 23h00. E para amanhã?
Si, claro, por mañana, si. O dono, de uma simpatia e profissionalismo à prova de bazuca, passeia-me pelas duas salas, pergunta-me que mesa prefiro, toma nota da reserva. No dia seguinte acolhe-me como se me reconhecesse da minha primeira infância. Pronuncia o meu nome com as letras todas ― Cris-ti-na!
Nada do indistinto e tristonho «Crestina» português. Depois de sentados (eu e o fotógrafo), um telefonema. É Isabel, uma jornalista espanhola que se propõe fazer-nos companhia esta noite. Passamos a ser três a jantar. Sugerem-nos trocar de mesa. Passados cinco minutos, do meio da sala, ouço o meu nome ser novamente enunciado de forma claríssima: Cris-ti-na!, seguido de um gesto que me indica o novo lugar: Venga! Levanto-me de um ápice. Obedeço. E aqui terei que esclarecer, para se entender o insólito da coisa, que eu persisto em ser mais do género a que se chama rebelde.
Vem-me à cabeça um álbum de Lucky Luke e o entusiasmo de Rantanplan obedecendo à mã Dalton que lhe ordena que se sente: Finalmente alguém que sabe mandar! As línguas, como a geografia, explicam muita coisa.
Dir-se-á que do conceito que fez fama à Movida madrilena ― a noite como espaço de liberdade ― se passou aos copos como forma de negócio. Sem querer entrar em polémicas, o que é indiscutível é que, pelo menos para quem chega de fora, eles ― os madrilenos ― continuam tremendamente frenéticos. Movendo-se. E arrastam-nos.
Há lugares que resistem. Escueto reabriu depois de um longo interregno (só ao fim-de-semana) precisamente no mesmo local onde a Movida começou, em torno da Plaza Dos de Mayo no bairro de Malasaña ou de Maravillas. No Berlin Cabaret, numa ruela do La Latina, uma das zonas mais castiças de Madrid, insiste-se em espectáculos independentes que pontuam noites de boa música e melhor ambiente. Por três vezes ― a primeira, à 01h00 ― abre-se o palco e sobem à cena três coelhinhas travesti, irreverentes e um pouco gordas. José María Calafat, um dos sócios do Berlin Cabaret, esclarece-me, antes mesmo de ter tempo de lhe ser apresentada: No hablo de sexo! E quando, na continuação da conversa, lhe peço para hablar mais despacio, interroga-me sobre a minha compreensão do espanhol. Com la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño (nas palavras de Ortega y Gasset) quer saber se percebi o que perguntara a um dos presentes: se deixara o namorado por ser importante ou por ser impotente. Esclareço-o que em português as palavras só divergem na pronúncia e não no significado.
No Búho Real, abençoado por uma colecção de mais de um milhar de mochos, continuam a servir-se as melhores caipirinhas de Madrid sob o lema sigue disfrutando de la noche. E foi o que fizemos... No táxi, ainda no mesmo quarteirão, avistamos um espaço sem história, o KWAI, que nos definem como o sítio de Madrid que vende as copas mais baratas. Garantem-nos que não têm efeitos secundários indesejáveis. Depois das discotecas (mais do que a música, o que surpreende é a beleza de locais como o Palacio Gaviria ou Joy Eslava no antigo Teatro Eslava, clássicos da noite madrilena), e dos clubes, que mudam de designação conforme o som, da responsabilidade de diferentes DJs, é forçosa uma ida à Chocolatería San Ginés, aberta desde 1894 e toda la noche, destino de peregrinação obrigatória na passagem de ano. O chocolate quente é óptimo e os churros acompanham.
O que mais pasma nesta villa é, não só a imensa diversidade de opções, mas a mistura de gentes e géneros que encontramos nos locais mais distintos. A ser verdade o que me dizia Antonio Ferres ― que em matéria de oferta hay El Corte Inglés e hay los outros ―, somos obrigados a concluir, ao fim de pouco tempo, que os outros ainda devem ser ainda muitos.
No Mercado de Fuencarral e ruas adjacentes, sentimo-nos catapultados para o que uma «atmosfera londrina» tem de mais livre e criativo. Lojas de roupa alternativas, jovens descomplexados, pelo menos no que respeita à cor dos cabelos, ruas pejadas de gente nova das mais diversas origens, contrastam radicalmente com o «ambiente Champs Elysées» que se vive, por exemplo, no Bairro de Salamanca, a excelência em matéria de compras.
Tenho para mim, contudo, que a perspectiva de comer bem é ainda uma razão maior que traz muitos portugueses à capital espanhola.
A gastronomia do país vizinho tem vindo a marcar pontos e alguns dos seus chefes actuais ganharam fama internacional. Mas mesmo aos fãs mais convictos dos novos sabores se impõe uma passagem pelo centenário Lhardy.
Foi aí, por volta das 07h30m da tarde, que deparei com um grupo de madrilenas já na casa dos 60 e vestidas a rigor ― calculo que em trânsito para o teatro, porque, mesmo para o padrão local, o esmero era exagerado ― tomando chá em pé, encostadas ao belíssimo aparador do fundo. Estranhei a hora e o desconforto. E também a falta de acompanhamento. Onde estavam as torradas?
O Lhardy é conhecido pelo seu cocido, especialidade madrilena superior, a fim do nosso quase homónimo cozido ― mas que não se deixe de provar também um cochinillo ou um cordero assados no forno de lenha do Botin, ao que parece o restaurante mais antigo do mundo, cuja origem remonta a começos do século XVII. Diz a tradição que Goya aí lavou pratos na cozinha e Hemingway, um cliente fiel, referiu-se-lhe no seu romance Fiesta. E, já agora, confirme-se o humor madrileno na porta quase ao lado, no El Cuchi, restaurante-bar mexicano que anuncia que Hemingwai never ate here. Avisam-nos também que ali não se fala francês, inglês ou alemão, prometendo-nos, em contrapartida, não se rirem do nosso espanhol.
Voltemos ao Lhardy. De arquitectura e decoração românticas, abriu as portas em 1839 e o nome deve-o ao fundador, um suíço que se radicou em Madrid. Como um fama que vem de longe, já uma personagem de Pérez Galdós o descrevia como el primero en las artes del comer fino. À entrada, uma tremenda panóplia de tapas e charcutaria vária recebe os comensais que podem, assim, ou tapear, ou levar para casa uma iguaria mais rara, ou aguardar mesa para o restaurante. Tinham-me falado também do hábito madrileno de vir aqui beber um caldo (do cocido, precisamente), a qualquer hora do dia. Quando interrogo uma empregada sobre o assunto, ela aponta-me simpaticamente um samovar. Abro a torneirinha e sirvo-me. Cumpro o ritual e esclareço o mistério do chá. Como já devem ter concluído, tratara-se de um equívoco. Afasto-me para deixar passar as damas de estômago proletariamente aconchegado pelo caldo caliente e, por momentos, regresso à descontraída Casa Ciriaco, outro dos lugares de referência da cidade (La más deliciosa y menos solemne de las doctrinas, es la gastronomía, diz a publicidade deste Restaurante-Taberna), pejado de imagens de famosos (comovente uma fotografia de Picasso cujo magnífico olhar se percebe rendido ao peso dos anos), célebre pela sua garrafeira e por ser um dos lugares eleitos da família real, e recordo o à-vontade, o tu cá, tu lá desafectado e simultaneamente admirativo com que nos guiam pela adega e falam do rei... e das suas amantes. Nem sei se serão monárquicos. Porque nesta terra pátria do pícaro, tudo é possível. Luísa, por exemplo, uma espanhola apaixonada por Lisboa, resumira a questão à mesa de um almoço: El rey está bien, pero yo soy republicana a cien por cento.
No As de Los Viños, em frente ao Teatro Albéniz, há outra tradição. A de vir aqui comer torrijas. Aparentadas com as nossas fatias douradas, As de Los Viños é o único estabelecimento em Madrid que as prepara, não com leite... mas com vinho. O oposto da sofisticação do Lhardi, trata-se de uma verdadeira taberna onde o menu completo fica por uma ninharia. Só faltou o café. As tabernas estão impedidas de o vender. No princípio do século existiam mais de 100, agora estão reduzidas a cerca de 50 mas é visível o esforço em renová-las.
Rosa Maria, uma madrilena bem-disposta que nos acompanhou no périplo pelas tabernas históricas, elege as mais reputadas. Casa Labra, onde foi fundado em 1879 o Partido Socialista Operário Espanhol; Taberna Café La Fontana de Ouro, hoje transformada em «bar irlandês», embora mantendo a arquitectura e os azulejos originais; Casa Alberto, no mesmo edifício onde se pensa ter vivido Cervantes... Já não estava connosco quando entrei na Taberna de Ángel Sierra e pude confirmar, mais de um ano após aí ter estado com amigos de boa memória num final de tarde chuvoso, que o vermú continua a ser servido do barril.
Um aparte, só para viciados em calçado. Junto a La Taberna de Ángel Sierra fica a calle Augusto Figueiroa onde, se conseguir encontrar outra coisa que não sejam sapatarias, juro por Santo Isidro, o padroeiro de Madrid, que andarei um ano descalça!
Por razões familiares, Rosa Maria agora sai menos à noite. Estamos sentados no Café Salón El Prado, um dos muitos cafés madrilenos que nos faz sonhar com Viena. Pergunto-lhe qual o segredo de tanta energia. A resposta não se fez esperar: «Hombre, pues no lo sé. Puede que sea la siesta!». Hombre, por estas paragens, parece ser um substantivo sem género.
As grandes avenidas é que me matam. São 07h00 da noite e o fotógrafo teima num enquadramento em pleno caos da Plaza de Cibeles. Ossos do ofício.
Uma multidão ciclópica invade as ruas. Some-se em direcção às bocas do metro. Emudece atrás dos vidros dos autocarros. Dispara nos semáforos. Os carros arrancam ao que se me afigura uma velocidade excessiva, obedecendo à polícia que comanda as operações. Deixam no ar um lastro de fumo e o eco cefálgico do barulho dos motores. Um helicóptero soma ruído por cima das nossas cabeças. Para o Blade Runner só falta a chuva. A sensação é tão real que, quando o fotógrafo me toca no ombro e me diz «Vamos?», por momentos surpreendeu-me que não fosse o Harrison Ford.
Esta não é, definitivamente, uma cidade amável, como poderemos dizer de Roma, por exemplo. Não respira a teatralidade delicada de Paris. Ganhará a Londres em beleza mas não chega a ser tão cosmopolita. E contudo... Regresso a Antonio Ferres. Madrid é sobretudo um excesso. Aqui parecem fazer especial sentido os versos da canção de Joaquín Sabina, las malas compañias son las mejores, o que, aliás, podemos interpretar como uma variante da ironia que se revela na frase de Montalbán: «Cada um de nós é má companhia para os outros.»
O índice de ruído (um dos mais elevados da Europa) aconselha a pelo menos uma tarde no Parque del Buen Retiro para retemperar forças ― embora possa não parecer à primeira vista, Madrid é uma «cidade verde»: uma árvore por cada três habitantes. Ou a uma tranquila visita aos vários museus da cidade.
Para nós é já meia-noite e o espectáculo na Casa Patas está prestes a começar. Alguns, mas não muitos, turistas, que aqui chegam guiados pela fama desta Fundación Conservatorio de Flamenco, contribuem para esgotar as entradas. Madrid é um dos melhores locais fora da Andaluzia para se assistir a uma exibição do género celebrado por Carlos Saura. O grupo de hoje chega de Cadiz. O público vibra com o dramatismo da voz. Aplaude a altivez dos gestos. A delicadeza das mãos. A beleza dos acordes. Depois da exibição abandona o local e dispersa-se pela espaçosa sala de entrada. Uns tapeiam na barra, outros ainda jantam nas mesas. Eu e o fotógrafo ficamo-nos pela conversa e pelas croquetas.
Foi então que pela primeira vez na vida, confesso-o publicamente, peço a um empregado de bar para não me encher mais o copo. É que pedi um whisky que me está a ser servido como se fosse água da torneira. Comento depois o sucedido com Luísa, a republicana, dizendo-lhe que em Portugal as doses não são bem aquelas. «Nem em Portugal nem em parte nenhuma do mundo», devolve-me.
E assim é Madrid. Onde a «vida é demasiado importante para ser levada a sério». Para lhe aguentar o ritmo, o segredo, segundo Rosa Maria, está na siesta. Ou na fiesta, digo eu. Como se preferir.
NOTA: Terão os eventuais leitores deste post de me perdoar se alguns dos locais referidos já não corresponderem ao boneco. A viagem não foi feita ontem. Mas o «espírito da coisa» será certamente o mesmo.
FOTO: O cantante madrileno Joaquín Sabina antes de ficar gordo, belíssimo exemplar de la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño